Muitas pessoas têm paixão por carros. Outros, por polêmicas. Não é o meu caso. Na adolescência, depois de conseguir a CNH, guardava uma certa simpatia pelo carro da família, que eu lavava e encerava por horas a fio, nas tardes de sábado, na esperança de consegui-lo emprestado do meu velho para dar um role à noite e tentar a sorte com as garotas. Portanto, amava as garotas, não o carro. Os romances costumavam fracassar, mas, definitivamente, isso não era culpa do carro, um charmoso Caravan vermelho-bordô, com câmbio no volante. Então, nunca fui muito ligado em automóveis, a não ser pela necessidade premente de ir e vir — e de trocar o óleo, de vez em quando. Não curtia também o automobilismo que, de maneira geral, era tido e havido como um esporte popular, embora, praticado por gente rica que torrava fortunas queimando o petróleo e a borracha dos pneus.
No último 1 de maio, completaram-se trinta anos desde a morte de Ayrton Senna em Ímola, na Itália. Lembro-me perfeitamente bem daquele fatídico domingo. Eu estava de plantão num hospital. Desde então, nunca mais assisti às transmissões de corridas da Fórmula 1. A temporada de 1994 estava uma verdadeira inhaca para o Ayrton. A FIA tinha mudado o regulamento em relação à suspensão dos carros, uma alteração que deixava os veículos “mais nervosos”, perigosos, difíceis de pilotar. Tanto assim que, às vésperas da morte de Ayrton, durante os treinos classificatórios, Rubens Barrichello sofrera um acidente gravíssimo que, por pouco, não ceifara a sua vida. Além dele, na véspera do GP de San Marino, o piloto austríaco Roland Ratzenberger decolou para morte ao perder o controle do carro e se espatifar contra o muro.
Senna vivia uma má fase no time da Williams, demonstrando insatisfação com o carro — que sofrera profundas mudanças para pior — com a sua equipe e com a própria FIA. Não ousaria fazer o papel de besta, ao presumir que, pelo semblante circunspecto, Ayrton Senna pressentira a própria morte naquele final de semana. A maior parte dos pilotos estava preocupada com as condições de dirigibilidade dos carros, um fator que, claramente, colocava as suas vidas em risco.
Senna passou reto pela curva Tamburello em altíssima velocidade e colidiu contra o muro. Pela TV, ao vivo, a audiência acompanhava o resgate dramático do piloto brasileiro e as malfadadas tentativas da equipe médica para salvá-lo. Senna foi levado de helicóptero para um hospital onde morreu pouco tempo mais tarde. É o que se conta. Alguns acreditam que o piloto possa ter falecido ainda dentro da pista, o que obrigaria a interrupção imediata da prova. Fato é que a corrida continuou como se nada de grave tivesse sucedido, demonstrando o poder macabro do business e a mais completa insensibilidade dos organizadores da prova.
Quando Senna bateu, a primeira reação que tive, como torcedor, foi de irritação. A urucubaca permanecia. Senna estava fora da prova e não pontuaria novamente. Ao notar as manobras de ressuscitação por que passava o piloto, fiquei estupefato. A notícia de sua morte foi recebida com um silêncio estrondoso. No dia seguinte, enquanto dirigia para o trabalho, macambúzio, cansado e melancólico, ouvi pelo rádio as últimas notícias sobre Ayrton Senna, as homenagens dos colegas de profissão, os planos da família para o funeral no Brasil e coisa e tal. No final da reportagem, bastante emocionado, o radialista tocou o Hino da Vitória, que fora veiculado reiteradas vezes nas transmissões da Rede Globo, sempre que Senna vencia uma prova. Uma tristeza profunda me abateu. Encostei o carro com dificuldade e chorei desbragadamente, como poucas vezes fizera.
Não precisava ser um fã de automobilismo — um esporte da elite — para perceber que as corridas de Fórmula 1 tinham perdido a graça, desde o desaparecimento de Ayrton Senna. Não o considerava um herói. Admirava-o pela perseverança, pela notória devoção ao esporte. Parecia-me um sujeito tímido, misterioso, de semblante quase sempre compenetrado, de olhos quase sempre tristes. O maior piloto brasileiro de todos os tempos, certamente. E mais: Senna era melhor do que Piquet. Mas, isso é só questão de opinião. Como essa, de que Ayrton Senna não era um homem feliz.