Filme da Netflix com Leonardo DiCaprio e Meryl Streep foi visto por mais de 175 milhões de pessoas nos primeiros 28 dias de estreia Niko Tavernise / Netflix

Filme da Netflix com Leonardo DiCaprio e Meryl Streep foi visto por mais de 175 milhões de pessoas nos primeiros 28 dias de estreia

Por trás dos êxitos cinematográficos, todos tingidos de certo cinismo e descrença na humanidade, “Não Olhe para Cima”, de Adam McKay, desvela sua interpretação sobre o maior temor da humanidade — e alívio para alguns —: a proximidade da morte.

Lançado em 2021, após quase dois anos de reclusão forçada decorrente de uma pandemia que desequilibrou muitos — e ceifou tantos outros —, McKay amalgama em seu filme suas visões, ora cômicas ora dramáticas, sobre as redes sociais como fontes perpétuas de hostilidade e subversão de valores, o avanço tecnológico incontornável, as oscilações climáticas, a superficialidade de pessoas que se julgam celebridades, resumindo, a vida no século 21, mantendo cada tema em seu compartimento e misturando-os à sua maneira. Deliberadamente caótico, “Não Olhe para Cima” mantém o espectador alerta, instruindo-o, de forma até didática, sobre o que merece preocupação ou despreocupação.

A trama abraça todos os clichês de um filme-catastrófico, centrando-se em um cometa prestes a transformar a Terra em ruínas em uma colisão estimada para daqui a seis meses e 14 dias. Esse astro desgarrado de uma galáxia vizinha foi descoberto graças aos esforços de Randall Mindy, astrônomo da Universidade do Michigan, e sua assistente, Kate Dibiasky, convocados para apresentarem detalhes sobre o que está por vir — como se fosse necessário — à Casa Branca. Interpretados por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, respectivamente, eles correm para uma reunião com Janie Orlean, a excêntrica presidente dos Estados Unidos vivida por Meryl Streep, convencidos de que a líder da nação está genuinamente alarmada e disposta a tomar medidas para minimizar os estragos, ainda que talvez seja uma missão impossível.

O absurdo cenário em que se encontram parece ser um prenúncio do apocalipse: Orlean demora sete horas para aparecer, absorta em debates sobre o nome que indicou para a Suprema Corte, um candidato que corre o risco de ser rejeitado devido a suas muitas artimanhas, tanto passadas quanto presentes. Uma situação pateticamente semelhante ao que frequentemente ocorre em um certo país ao sul do continente.

A partir desse ponto, a crítica política se intensifica, com a Casa Branca mergulhando cada vez mais em uma narrativa burlesca, porém lamentavelmente verossímil, encarnada em uma governante obcecada pelas próximas eleições legislativas, cruciais para determinar se sua permanência no cargo será viável ou se terá que considerar alternativas caso as coisas não estejam favoráveis. O cometa pode até ser relevante, mas o instinto de sobrevivência política fala mais alto.

O diretor sugere que, no fundo, a natureza humana se assemelha mais a Janie Orlean do que a Randall Mindy, mais preocupada (e tocada) pelos escândalos políticos do que pelas possíveis catástrofes que podem acabar sendo apenas delírios, ou talvez a esperança suicida e homicida de alguns fanáticos, cujas únicas aspirações na vida, como os romanos no poema de Konstantinos Kaváfis (1863-1933), escrito em 1904, são esperar pelo fim. O título, “À Espera dos Bárbaros”, foi aproveitado pelo escritor sul-africano J.M. Coetzee em seu romance publicado em 1980, que posteriormente virou filme pelas mãos do diretor colombiano Ciro Guerra, em 2019. O mundo é uma pequena aldeia.

Mindy e Dibiasky são os cavaleiros do Apocalipse, conscientes de seu papel, mas enfrentam uma tarefa árdua, complicada ainda mais por jornalistas que transformam tudo em espetáculo. Em “Não Olhe para Cima”, essas figuras são bem representadas por Jack Bremmer e Brie Evantee, os âncoras que dão um sabor ainda mais sinistro ao enredo. Nesse ponto, alguns podem se perder no universo de criatividade indomável de McKay, repleto de estrelas — um elogio à diretora de elenco, Francine Maisler — ou podem estar hipnotizados pelo estranho penteado de Lawrence, certamente um dos mais peculiares da história do cinema, outra demonstração de sua dedicação à arte. Mas o filme possui momentos marcantes. A entrevista concedida pelos cientistas aos personagens de Tyler Perry e Cate Blanchett é, sem dúvida, um dos pontos altos da trama; sutil em sua turbulência, a cena revigora a tensão em torno dos limites da imprensa, do desprezo pela ciência e do obscurantismo intelectual, do negacionismo. A farsa circense protagonizada por Bremmer e Evantee leva Dibiasky ao desespero, fazendo-a gritar em rede nacional que todos estão condenados, e ela tem que lidar com as consequências de sua coragem impulsiva. A distopia é palpável.

O trabalho da equipe de efeitos visuais, espetacular, sugere algum conforto espiritual no desfecho de “Não Olhe para Cima”, na Netflix, em uma era em que políticos demagogos enfrentam a fúria de criaturas que, à primeira vista, parecem adoráveis, mas que, como eles, sabem esconder bem suas verdadeiras intenções. Não é uma solução definitiva, mas o cinema existe mais para iludir o homem do que para confortá-lo. Não olhe para baixo.


Filme: Não Olhe Para Cima
Direção: Adam McKay
Ano: 2021
Gênero: Comédia/Drama/Ficção Científica
Nota: 8/10