Tornar-se quem se é leva tempo e exige fibra, como sabem todos os que têm de renascer mil vezes em mil diferentes corpos até conseguirem a vida que julgam ideal. Autocobranças, satisfações que achamos que devemos ao universo — quando o universo não faz a menor ideia de quem somos, e não tem nenhuma pretensão de inteirar-se de nossas carências —, os dilemas existenciais característicos, muitos profundos como um balde, e dúvidas quanto ao que o futuro mantém guardado em seu baú: a juventude é um teste cruel a que boa parte dos seres humanos temos de nos submeter, mas é também uma fase maravilhosa, plena de aprendizados, de descobertas, um tempo durante o qual surgem os primeiros amores e as primeiras desilusões, e desses dois polos floresce o talento, força salvadora e destrutiva com a qual nos defendemos e nos atacamos.
Gianna Nannini sempre teve certeza de viera ao mundo para cantar, e um pedaço saboroso de sua como uma das mais cantoras mais queridas da Itália vem a lume em “Bela e Rebelde”, a biografia musical de Cinzia T.H. Torrini. Junto com a artista e os corroteiristas Cosimo Calamini e Donatella Diamanti, a diretora resgata as primeiras três décadas de vida da cantora, com passagens da infância de Nannini, quando, a seu modo, tentava convencer os pais a deixarem-na frequentar aulas de canto com a professora que a hostilizava, chega à adolescência, especialmente perturbada pela sombra do abuso de drogas, inferno que se arrasta por anos, e culmina no tão desejado sucesso, uma escalada que a fez perder o medo do desconhecido e adquirir cicatrizes.
“Bela e Rebelde”, adaptação de “CazziMiei” (um xingamento popular na Itália), a autobiografia de Nannini publicada em 2016, não é um filme autobiográfico, segundo ela. A própria cantora explica o paradoxo, ressaltando que Torrini pintou com as tintas dramáticas que julgou convenientes episódios como a primeira insurreição da menina Gianna diante dos pai Danilo, com Maurizio Lombardi num desempenho irregular, mas que dá uma providencial guinada do melodrama para a tragédia no desfecho.
A família está reunida na sala quando ouve no rádio que “Nel Blu, Dipinto di Blu” (1958), de Domenico Modugno (1928-1994) e Franco Migliacci(1930-2023), interpretada por Modugno e Johnny Dorelli, vence o Festival de Sanremo, uma das mais prestigiadas celebrações da música. Gianna se levanta e se põe a cantar junto, assombrando os pais, que se dão conta de que a garota não vai mesmo se interessar por seguir uma carreira mais ortodoxa, no magistério ou diante dos fornos da padaria de Danilo, e tampouco se casar. Nannini esclarece que o patriarca era, sim, um homem muito pouco dado a tais modernices, como quase todos no fim dos anos 1950, mas não era nenhum déspota — ainda que tenha se enfurecido com o desaparecimento da filha.
Em 112 minutos, as cenas que mais captam a atenção de quem assiste são as que retratam o despontar da esquizofrenia que, novamente segundo a cantora, nunca tiveram nada a ver com a drogadição. Bastante parcial, “Bela e Rebelde” fecha para cima, com Nannini, ainda charmosa as vésperas dos setenta anos, com fôlego para mais um século, entoando, claro, “Sei Nell’anima” (2006), de sua fase mais pop, um hino de amor, mas também um agradecimento rasgado aos fãs.
Filme: Bela e Rebelde
Direção: Cinzia T.H. Torrini
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Musical/Biografia
Nota: 8/10