Li “A Mercadoria Mais Preciosa — Uma Fábula”, de Jean-Claude Grumberg. É o livro mais simples, direto e contundente que li esse ano. Apesar das afirmações do autor de que nada ali é verdade, nada além do amor possível e improvável entre humanos, que parece um estranho no cenário da segunda guerra mundial e do extermínio em massa de judeus, o livro é o retrato de uma realidade histórica terrível.
Ernest Hemingway, um especialista em guerra, disse: “Não importa quão necessária ou justificável seja uma guerra, ela será sempre um crime.” Nada é mais certo. Na guerra, todos perdem. Grumberg perdeu muito. Mas não se afastou da vontade de contar uma história fabulosa ocorrida em meio ao horror de um conflito estúpido que assolou a Europa e destacou-se pelo excesso covarde de uma nação contra um povo inocente.
Novamente estamos em tempos de conflito. Agora que Israel protagoniza um ataque contra a Faixa de Gaza, o livro de Grumberg levanta um debate importante. Somos mesmo tão diferentes assim uns dos outros? Nessa fábula curta, o autor conta a história de um casal de judeus e seus dois filhos gêmeos (um menino e uma menina), recém-nascidos, que são presos e levados de trem para os campos de concentração nazistas. Durante a viagem, o pai, prevendo o pior, decide jogar pela janela, na neve, bem enrolado em um tecido fino e distinto, um dos filhos para que esse tenha um a chance de viver, uma vez que a mãe não possui leite suficiente para amamentar os dois. O bebê cai nas mãos de uma camponesa ignorante, numa terra distante de uma língua desconhecida. A mulher havia pedidos aos deuses um filho, pois julgava não poder concebê-lo naturalmente.
O trem, supostamente carregado de mercadorias, deixa escapar, pelas mãos de um desconhecido, que toma uma decisão radical, uma “Mercadoriazinha”. Assim, é chamada a gêmea que tem seu destino totalmente alterado daquele de seus pais e irmão. A lenhadora, que reza para os deuses do trem, dentre outros, tem seu desejo atendido. A ingenuidade aliada à crença faz com que o tema das diferenças funcione como um deselegante puxão de orelhas num conto cheio de moral. “Pobre lenhadora”, se apega a qualquer possibilidade de esperança. Diante do antagonismo: judeus crentes com uma disciplina milenar, a mulher apresenta-se como uma pessoa sem a menor estrutura para organizar a sua fé, mas vê bondade no ser humano e na pureza do bebê, contrariando a máxima local de que judeus são “sem-coração” e “mataram o cristo”. Afinal, ela entende, a criança não é nada, nem pagã nem judia.
O final da guerra inaugura um período intimista, de conflito individual, bem elaborado pelo autor. O discurso versa sobre os sobreviventes tentarem, ferozmente, uma reconciliação com seu passado. Para vencerem a guerra interna, terrível e cruel, precisam lutar. O que acontece com os novos soldados? A guerra foi vencida. Melhor pensar que sim e colocá-los em uma história, pós-sofrimento, de conquistas e redenções. No mar de humanos sobreviventes, individualmente, tudo é possível. Coletivamente, espera-se que a justiça seja o destino formidável de todos. O futuro do sobrevivente está selado pela realidade indelével de sua experiência. Quando finalmente livre, o pai está só, Grumberg elabora sua sina: “Os cantos, as bandeiras, os discursos, até mesmo os foguetes, toda aquela loucura, toda aquela alegria lhe lembrava que ele estava sozinho, que ficaria sozinho para sempre, sozinho ao respeitar o luto, ao carregar o luto da humanidade, o luto de todos os massacrados, o luto de sua esposa, de seus filhos, dos parentes dele, dos parentes dela. Atravessava as cidades e os povoados, como um espectro, testemunha das libações, do júbilo, das saudações, dos juramentos: aquilo nunca mais, nunca mais.” Tudo isso é muito real para uma fábula!
Finalmente, uma pergunta paira a respeito desta fábula de guerra. Qual motivo levou o pai a salvar a filha? Uma chance para a criatura que apenas surgiu no munda há pouco e não terá oportunidade de viver? Não! Grumberg responde: “Vencera a morte, salvara a filha com aquele gesto insensato, derrotara a monstruosa indústria da morte.” É possível enumerar quantas vidas foram vingadas com esse salvamento? Impossível.
Ao final da leitura, reverbera as palavras de Hemingway. Os crimes de guerra são muito maiores que quaisquer outros crimes. Eles mudam essencialmente a natureza humana, a história de um povo e a ordem natural com que se deve viver a vida desde o nascimento até a morte.
Livro: A Mercadoria Mais Preciosa — Uma Fábula
Autor: Jean-Claude Grumberg
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar
Páginas: 80 páginas
Editora: Todavia
Nota: 9/10