É a Ales, de Jon Fosse

É a Ales, de Jon Fosse

Li “É a Ales”, de Jon Fosse, e fiquei desconfiado. Em tempo, explicarei. Se o livro não carregasse timbrado o logo de ganhador do Prêmio no Nobel, por causa de seu título cacofônico talvez ficaria encalhado nas prateleiras das livrarias. Para além desse detalhe, o livro é peculiar, não exatamente num bom sentido. Fosse empenha-se, claramente, em desenvolver uma estilística única, diferenciada. Em grande parte do livro, a história efetivamente não acontece. Os eventos são arrastados, fazem pouco sentido, estão imersos numa neblina fria e na descrição vertiginosa do autor. Talvez seja culpa do clima norueguês.

Essa literatura tem um análogo matemático eficaz. Fosse escreve em espiral. Dá voltas em torno de um ponto central, repete e em seguida intensifica para elevar seu texto para um degrau acima. Ficamos felizes ao entender que a espiral evolui, sobe. O que isso significa? Ele conta a mesma história várias vezes com pequenos incrementos significativos para avançar no entendimento de sua história e seus personagens. O círculo sobe e o desenho espiral cria um túnel fascinante para cima. Em um momento, após a metade do livro, ela cresce mais rapidamente e suas linhas ficam mais robustas, ou seja, a história de “É a Ales” ganha sentido e força. E quando ganha, percebemos o quanto ela é boa. É intensa, incisiva e real.

É a Ales
É a Ales, de Jon Fosse (Companhia das Letras, 85 páginas, tradução de Guilherme da Silva Braga)

Em “É a Ales”, Fosse descreve duas personagens isoladas em um ermo frio e chuvoso, à beira do mar. É um casal que revive sua história enquanto coexistem numa casa centenária com os fantasmas de seus parentes passados. Asle, é uma figura ensimesmada, obcecada por um barco e pelo mar e que desaparece certo dia, sem que sua companheira entenda como e por qual motivo isso acontece. Retorna mais de vinte anos depois e reencontra o lugar que deixou praticamente do mesmo jeito. Signe é sua a companheira que tenta entender sua vida ao lado dele, questionando o seu comportamento plácido e indiferente. Asle é o mar em um dia tranquilo. Seu passado é o mar revoltoso. As ondas trazem os eventos terríveis, que marcaram seus antepassados, para os dias atuais, para coabitarem na casa em que vivem Asle e Signe e torná-los participantes de suas dores e perdas no passado.

Asle não vive em Comala, como Pedro Páramo, mas parece sofrer das mesmas agruras das crias de Juan Rulfo. Fosse constrói seu romance vertiginoso e espiral inspirando-se na alma do escritor mexicano. Não imita, mas garante a essência. Há uma busca da cultura dos antepassados do protagonista e dos limites de suas ações orientadas à manutenção de suas necessidades. Desde Ales, a descendente mais antiga, com sua forma artesanal de viver e cuidar, meio mística, suscintamente mística, passando pelas peculiaridades da relação pais e filhos na geração posterior e terminando na indecisão afetiva do descendente atual, o elemento curioso, indefinido e misterioso da trama.

O livro é arrastado e cansativo, mas passa sua mensagem com maestria. A verdade é que não é possível que uma literatura ganhadora do maior prêmio literário do planeta não seja, de alguma forma, muito boa.


Livro: É a Ales
Autor: Jon Fosse
Tradução: Guilherme da Silva Braga
Páginas: 112 páginas
Editora: Companhia das Letras
Nota: 7,5/10

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.