Em momentos das últimas décadas, surgiu a ideia de que o Brasil atravessava um período de desmanche. A violência urbana passou a dar o tom das imagens, narrativas e até dos sons. Pintou nas telas de cinema, livros e discos uma sociedade aterradora. Nesse caldo cultural, se destaca a produção ficcional de Marçal Aquino e Patrícia Melo. Ambos dialogam com a linguagem cinematográfica, e a novidade veio da escrita ágil, urgente e muito precisa ao captar uma realidade traumática do país.
Os leitores e as leitoras podem achar que se trata de obras menores, pouco ambiciosas. Mas uma visão muito apurada brota em “O Invasor” (2011), de Marçal Aquino, e na sequência “O Matador” (1995) e “Mundo Perdido” (2006), de Patrícia Melo. Eles decifraram uma mutação da sociedade brasileira, a partir de narradores em primeira pessoa. Os empresários que se aproximam dos mercados do crime, e o sujeito subalterno que sobe na escala social por meio de seus serviços ilícitos.
“O Invasor” traz a história contada pelo personagem Ivan, que é dono de uma construtora na cidade de São Paulo. Marçal Aquino entra na cabeça de um homem rico que decide com Alaor matar o sócio deles (Estevão). Para isso, contratam a figura fantasmagórica do livro: o pistoleiro Anísio. O primeiro capítulo é a descrição do encontro inicial dos dois empreiteiros com o assassino profissional num bar de periferia, onde Anísio é o protagonista e domina aquele espaço.
“Dá só uma olhada no povo deste lugar: tudo cara fodido, de pele manchada, faltando dente, unha preta”, diz o narrador. A partir deste encontro, a narrativa vai revelando o lado feio e sujo de Ivan e Alaor. Há uma mistura clássica de ordem e desordem na vida dos personagens. As contradições afloram uma atrás da outra: Alaor é dono de um prostíbulo de luxo na capital paulista e Anísio se enxerga como um prestador de serviços que, após realizar o assassinato, quer virar o chefe da segurança da construtora.
A tensão narrativa se intensifica na medida em que Anísio “invade” o espaço social de Ivan e Alaor. Todos estão metidos nos mesmos crimes, mas os empresários apenas se veem no papel de contratadores de um serviço, assim como se faz com consultorias ou compra de materiais de construção. Porém não admitem que a desordem é a regra para o “bom funcionamento” das coisas contemporâneas.
“Essa é boa: meu sócio é dono de um puteiro e eu nunca desconfiei de nada. É de foder. / Diversificação de negócios, meu caro. É a onda do momento. / Porra, Alaor, imagine o escândalo se alguém descobre uma merda dessas. Isso dá cadeia”, diz Ivan, que se afunda no universo de ilegalidades normais.
Novos comandantes
Um achado de Marçal Aquino é a revolta de Anísio, que decide ir contra o acerto feito com os dois empresários. Trata-se da rebelião de baixo provocada, por exemplo, pelas milícias e grupos armados nas metrópoles. O matador não se contenta mais em ser mero prestador de serviços, mas sim quer usufruir das benesses das classes altas. Em outras palavras e em outros tempos, é como se os jagunços se rebelassem para tomar o comando dos fazendeiros de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.
“O Invasor” teve uma primeira versão em 2001 no filme homônimo de Beto Brant. O que o livro trouxe dez anos depois, foi a novidade do narrador Ivan, que desvenda as teias de relações novas na sociedade. O novo está na mistura potencializada de negócios legais com ilegais e na ascensão dos pobres que veem o crime como um empreendimento. E o mais o importante: Anísio é a alegoria para os tempos atuais, do sujeito que veio de baixo e que passa a dar as cartas numa série de temas da sociedade.
O caminho de Anísio já havia aparecido em “O Matador”, de Patrícia Melo. Neste livro, a escritora toma o ponto de vista do subalterno, o jovem de periferia Máiquel. Ele narra sua história de prestador de serviços para pequenos empresários de bairros na capital paulista. A partir do mergulho nos pensamentos de um matador, a autora revela uma teia social que se tornou evidente apenas 20 anos depois da publicação do livro. O personagem que é eficiente ao matar pessoas e que recebe o título de “cidadão do ano”.
“O Homem do Ano” é título da adaptação do livro de Patrícia Melo para o cinema em 2003. O roteiro foi escrito por Rubem Fonseca, que apresentou ainda nos anos 1970 os primeiros movimentos do desmanche do país, a partir da violência do Rio de Janeiro. A diferença é que a escritora deu voz essa figura periférica, solta no mundo, enquanto Fonseca tem o olhar de cima, as classes altas sitiadas em seus apartamentos, o policial, o investigador, o personagem com excesso de masculinidade.
Máiquel é o personagem trágico que vira um homem célebre — dentro da tradição brasileira de louvar os crápulas. A entrega do prêmio a ele revela a nova sociedade em ritmo acelerado de degradação. De novo: trata-se uma narrativa que ganhou pleno sentido 20 anos depois de publicada por Patrícia Melo. Uma galeria de figuras respeitadas surge numa zona cinzenta de legalidades e ilegalidades. Diz o narrador de “O Matador”, que tinha pesadelos com a cerimônia e imaginava como ela seria:
“Subi no palco, meu coração parecia uma bomba-relógio. Aplausos. Eu gostaria de dizer, aplausos, eu gostaria de dizer que estou muito emocionado, aplausos, receber o título de Cidadão do Ano é uma honra muito grande, eu disse, aplausos, a plebe, plac, plac, plac, gostaria de agradecer ao prefeito, bom cidadão, aplausos, ao senhor secretário de Segurança, bom cidadão, aplausos, a todos os policiais aqui da região, aplausos, uma mulher com vestido vermelho levantou-se e começou a me aplaudir de pé, aplausos, e todos se levantaram, aplaudindo, uma tempestade de palmas”.
O personagem Máiquel foi retomado no romance “Mundo Perdido”. Na continuação da história, ele vaga pelo Brasil e por países vizinhos atrás de sua filha que foi levada por sua segunda mulher — ela se casou com um pastor evangélico. O drama humano (o pai em busca da filha) é o fio condutor para se observar o estado de coisas. Patrícia Melo reuniu uma série de ingredientes para criar uma ficção que revela uma sociedade em fim de linha. Vemos uma escrita para dar conta do tamanho do desmanche.