O que “Ligações Perigosas”, de Chordelos de Laclos, tem a ver com “Precisamos Falar Sobre o Kevin”, de Lionel Shriver? São romances epistolares, que se desenrolam por meio de cartas, adaptados para o cinema. Stephen Frears e Milos Forman trouxeram Laclos para os tempos modernos. O filme de Lynne Ramsay ganhou mais notoriedade do que o livro de Shriver. A ponto de se tornar a primeira referência do título.
Neste caso, não se trata de uma troca de correspondência. Ao contrário de Laclos, estamos à mercê das cartas de uma única pessoa. Sem saber, a princípio, se elas foram enviadas ou respondidas. O valor terapêutico assemelha-se a um diário. Se escreve para si mesma, as epístolas adquirem a forma de uma confissão na fronteira do inconsciente.
Logo no começo temos uma discussão muito franca sobre os temores da maternidade. Eva Khatchadourian, autora do texto, uma intelectual de boa formação e vida confortável em Nova York, cujo nome leva o pensamento para referências religiosas, deixa antever que os receios acabarão sendo pequenos diante da tempestade que a condenará ao papel de náufraga sem nenhuma possibilidade de salvação.
As dúvidas relacionadas a uma suposta vocação existencial e biológica, do corpo submetido aos rigores da gestação, não desaparecem com o nascimento do bebê. A culpa, fortalecida por sentimentos inadequados, desenha o perfil de uma depressão pós-parto. As dores são tão lancinantes quanto um princípio de morte. O resultado é um choque provocado pela aparente contradição. Cadê a felicidade esperada?
A complexidade do caráter do filho em crescimento é anunciada com a certeza de que ele vai cometer uma atrocidade. A questão é identificar os sinais que fariam dele um adolescente problemático. Kevin é maléfico desde criança ou não passa de um menino introspectivo, com tendências de misantropia? O interesse da mãe em descobrir os motivos do comportamento estranho corresponde ao desinteresse do pai em assumir que o comportamento possa ter alguma coisa de anormal. O livro tangencia o terror que ameaça a inocência e a ingenuidade. Ou a mera displicência.
A decisão de aumentar a família, como se fosse uma compensação ou uma experiência de feições medonhas, brota em um terreno especial de crise. O desafio acabrunhante vai no sentido de comprovar que “nosso filho já nasceu desalmado”. A chegada de Celia, com suas características suaves e frágeis, equivale a oferecer um brinquedo demasiado conveniente ao leitor para confirmar as dúvidas sobre a personalidade temerária do irmão, que se evidencia na escola e na vizinhança.
O encerramento não tem nenhuma resposta que sirva para amarrar o pacote com um laço de fita que deixe tudo com uma aparência bonita. Passamos pela fatídica quinta-feira com o assombro dos avisados que não estavam preparados para os detalhes do grande evento. E descobrimos que Eva está disposta a nos dar mais um susto enorme, além de todos que ela compartilhou ao longo do livro. Quando ela assume em definitivo a responsabilidade de ser mãe é como um soco no estômago capaz de nos tirar o fôlego.