No dia 24 de maio de 1941 nascia mais um jovem, e complexo, judeuzinho na cidade de Duluth, em Minnesota. Pesava 3 quilos e 200 gramas, fora toda a carga milenar que já carregava. Quatro dias depois, o pacto com Deus foi realizado. Com certo sucesso. O pequeno depauperado recebera a alcunha judaica de Shabtai Zisel ben Avraham, e o nome americano Robert Allen Zimmerman. Anos depois, de saco cheio de toda essa inventividade cultural e religiosa, e querendo esconder seu little Bob das garotas gentias, adotaria a poesia com a qual ficaria mundialmente conhecido: Bob Dylan.
Filho de imigrantes judeus do Leste Europeu, Bob teve uma criação judaica conservadora. Mais do que o conhecimento das rezas e das letras, seus pais lhe passaram a famigerada herança da culpa. Culpa essa que sempre carregou, mesmo quando abraçou e rejeitou a fé em Jesus.
Aos 13 anos, realizou seu bar mitzvá com um antiquado rabino de Nova York, e passou a ser irresponsável pelos seus atos. Junto ao rebe, viveu momentos de amor e ódio diante de todas aquelas kafkanianas histórias. Anos depois, seus pais o enviaram para o Camp Herzl, uma colônia de férias que tinha o intuito, não tão velado assim, de casar judeuzinhos a fim de lutar contra a assimilação. Quase sufocado por toda essa imersão judaica, ainda se juntou à fraternidade Sigma Alpha Mu, experimentando outras desavenças com seus circuncidados companheiros conhecidos como Sammies. Estranho no ninho de estranhos, Bob foi convidado a se retirar da fraternidade, e sua vida Ahasverus errante teve início. Morou em vários lugares, buscou outras formas de enxergar o mundo, cantou todos os seus sentimentos e suas insatisfações. Mas, além de nunca se encontrar fisicamente, também sua alma, seus monstros e suas dores jamais descansariam de buscar. De se perder. De pertencer.
O seu judaísmo era, portanto, uma grande questão. Uma quimera, que o fazia caminhar, mas que o atormentava constantemente. Em 1978, Bob, depois de algumas viagens psicotrópicas, disse que ter tido uma “visão e uma sensação” da presença de Jesus Cristo em sua sala de estar. Teria sido uma epifania antijudaica? Uma nova era messiânica? Uma forma de exorcismo? E Bob abraçou essa revelação. Dias depois, durante um show em San Diego, ele pegou uma cruz que uma fã havia arremessado sobre o palco (teve certeza que era uma mensagem de Cristo) e passou a usá-la com ardor. Escolhera trilhar o caminho de Jesus e até compôs em sua homenagem. “Slow Train Coming” foi seu canto de louvor pelo renascimento de sua perdida e labiríntica fé.
Mas o catalisador de sua conversão surgiu, é claro, pela mediação de seu little Bob. Ao se encantar com as curvas de Mary Alice Artes, uma linda moça ligada à igreja evangélica de Vineyard Fellowship, em Los Angeles, Bob teve outra epifania: a do desejo incontrolável. Ele tinha que possuir Mary a qualquer custo, mas ela só entregaria a alguém de professasse sua fé. Bob era obstinado. Encontrou-se com os pastores Paul Emond e Larry Myers e disse que sua vida era vazia e sem sentido antes de conhecer a famigerada Mary. Mais que fé, os religiosos enxergaram um gigantesco pote de ouro surgindo ali, e o convidaram a abraçar suas doutrinas: “Deus é o único e verdadeiro sucesso”. Bob passou alguns dias recluso e inteiramente despido (com a namorada), lendo a bíblia, e finalmente concluiu que Jesus era de fato o salvador. Amém.
Bob frequentou a igreja, e o corpo de Mary, com bastante assiduidade. Em 1979 foi batizado e relatou que “teve uma genuína experiência de renascimento em Cristo”. Compôs três discos sob a influência e o encanto do nazareno. Explodiu. Foi falado, aclamado e crucificado como um legítimo judeu. Mas, a verdade é que ninguém nunca compreendeu muito bem sua conversão. O mago imortal Keith Richards, que já viu e verá tudo neste mundo, o chamou de “o profeta do lucro”. O místico Leonardo Cohen ficou perplexo: “Não estou entendendo. Simplesmente não estou entendendo. Por que ele iria se valer de Jesus nesta altura? … Não entendi esse negócio de Jesus”. Outros, mais grosseiros, resolveram apenas chama-lo de “meshugá” — maluco.
Mas essa conversão gerou problemas, sobretudo para seus filhos, que haviam sido criados no judaísmo e acreditavam nessa cultura milenar. Também o arrebatamento por Mary havia passado. Bob novamente se encontrava perdido e dilacerado. Sua engenhosidade estava desaparecendo. Ele precisava se reinventar. E Jesus não mais o salvaria.
Então, lá pelos anos 80, o acaso (ou as bruxas) o levam a conhecer o fabuloso Menachem Mendel Schneerson — o Rebe de Lubavitch. Com sua áurea, seu entusiasmo, sua fé e sua certeza na chegada triunfante de um “mashiach” — messias (muitos disseram que ele próprio seria o escolhido), o rabino desconverte Bob — “sai desse corpo, Jesus. Este judeu não lhe pertence”. A alma, a música e a desejo renascem novamente no sr. Zimmerman. Em 1989, ele celebra seu retorno e seu reencanto com a tradição judaica ao tocar “Hava Naguila” num programa de televisão. Bob está feliz, alegre, reluzente. Está cantando e dançando com um autêntico chassídico. Está pronto para escrever poemas, canções, sonetos. Aguarda, em silêncio, por mais glória.
Em 2016, o ungido Bob surpreendentemente recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Ninguém entende, mas todos têm uma opinião para compartilhar. Muitas discussões, muitos palpites, muitas brigas e inúmeras constatações ridículas. Todo mundo vira crítico literário. Todo crítico literário se torna um erudito. Todos os escritores comentam, com muita autoridade, o que não sabem. Um rebuliço total nas redes sociais. E o sensacional e bartlebiano Bob Dylan se cala. Seu silêncio, seu descaso, sua empáfia o tornam verdadeiramente mais um personagem do “Meshugá”.
Bob Dylan muito se assemelha com os personagens do “Meshugá”. Um gênio excêntrico. Um judeu que vive sérios conflitos consigo mesmo. Teve uma infância muito parecida com Philip Roth — que tem seu mote e seus monstros todos judeus, e que foi acusado de ser mais um ‘auto-odioso’ judeu. Também sempre quis pertencer a alguma doutrina ou a alguma fé, assim como a nossa incrível escritora Clarice Lispector, mas só a encontraram nas letras — cancionadas ou poetizadas. Foi um rebelde com muitas causas, louvou Jesus, e se tornou quase uma divindade como Bob Fischer, o ídolo americano e grande campeão de xadrez, que encontrou a salvação nos atos extremos e nas crenças odiosas de Osama Bin Laden. Dylan também vislumbrou a essência de um Messias, e muitas vezes se viu como um, muito parecido com Sabbatai Zevi, o rabino que atraiu centenas de milhares de seguidores, prometendo o Paraíso, mas que teve um fim inesperado. Essas e outras histórias, outros personagens, e outras invenções literárias e humanas, podem ser encontrados no livro “Meshugá: Um Romance Sobre a Loucura” (José Olympio, 2016).