Aprendi a ver de verdade enquanto olhava para um relógio, esperando consulta médica que ficava cada vez mais distante. Até aquele dia, só olhava, sem nada ver direito. Flagrei o momento exato em que o ponteiro começou a dançar frenético de um lado para outro. Ele ia e voltava entre o décimo sexto e o décimo sétimo segundo de um minuto, aprisionado naquela impertinência de quem não se sabe medíocre. Comecei a caçambar os joelhos entre uma perna e outra da cadeira, com agonia pelo relógio e pela demora.
Uma melodia enlouquecedora não abandonava a batucada de meus dedos, espalhando-se pelos pés, que batiam — em tentativa vã de soar discretos aos pacientes à volta — qualquer tango com aires buenos que viesse à mente. O ponteiro enlouquecido parecia seguir a batida e, sem que percebesse, relógio e eu nos tornamos um cânone a enaltecer Piazzolla na sala de espera de um consultório, discretos cúmplices de uma sinfonia de malucos.
Deu a hora da consulta e a secretária cometeu a descortesia de me interromper a orquestra. A vertigem daquele eterno segundo caiu como uma bigorna… Aquilo era graça pura. Lembrei-me de Clarice, que certo dia flagrou uma folha batendo em seus cílios e achou Deus de uma grande delicadeza. Clarice via sentido onde não havia, porque, a bem da verdade, não há graça em lugar algum senão nos olhos de quem vê. A poesia é do poeta e não da musa que o inspira.
Otto Lara sabia disso e lamentou: “O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio”. Poesia não se aprende. Não há métrica ensinada, calculada, bem dosada, que faça com que uma folha no cílio faça sentido. Tentar ensiná-la é como os “coachings” da moda que, iludidos, iludem também multidões sobre como fazer amigos. Não se ensina a fazer amigos, como não se ensina a ver poesia. Talvez seja possível despertar um olhar, alertar para algo ainda não visto… Mas isso não nasce, apenas se desperta.
Ver o que ninguém mais vê guarda certo ranço de solidão. É por isso que os poetas escrevem, para procurar nos recônditos outros insanos que guardam os olhos na caixa de brinquedos e não na de ferramentas. Mas há momentos inebriantes, ainda que solitários, quando a descoberta rompe as membranas de aço construídas pelo cotidiano. Por um segundo, desnuda-se a alma para colocá-la dançando sobre uma chuvinha de domingo.
É tudo mais simples do que parece, como são as coisas espontâneas. Depois de muito sofrer com a desculpa daqueles que não querem trabalhar e fogem dizendo que “foram tomar um café”, Rubem Braga decidiu dedicar aos salafrários uma ode. Fez brotar graça onde não havia e tornou a birra de seus leitores também mais leve. “Ah, sim, mergulhemos de corpo e alma no cafezinho. Sim, deixemos em todos os lugares este recado simples e vago: ‘Ele saiu para tomar um café e disse que volta já’.”
Recorramos à poesia como se recorre ao cafezinho, a todo momento. E deixemos um recado simples como quem sabe que explicações pouco valerão a quem não sabe enxergar: “fui com meus olhos vagar na caixa de brinquedos e já volto para o mundo real”. Mas quem sabe a realidade esteja mesmo é por lá.