Thomas Bernhard, o filho ingrato da Áustria e a precária arte da sobrevivência

Thomas Bernhard, o filho ingrato da Áustria e a precária arte da sobrevivência

Não estamos certos de que “Mestres Antigos” (1985), conhecida obra do escritor austríaco Thomas Bernhard, seja um dos melhores livros de se ler — sua técnica é um tanto monótona, e carece de ação. Como evidencia também o jovem Tonio Kröger, de Thomas Mann, pensar demais parece ser um defeito dos austro-alemães, levando a intelectualismo sufocante e, neste caso em particular, a uma prosa de estilo ensaístico-filosófico. Estamos certos, porém, de que quatro ou cinco páginas finais deste livro explicam de modo surpreendente a imensa controvérsia criada por seu protagonista, Reger, e, mais que isto, que conseguiu ecoar a percepção universal sobre o significado último da cultura, sobretudo em face dos laços humanos.

Thomas Bernhard (1931-1989) parece ser o filho ingrato da Áustria, embora seu grande divertimento não seja propriamente destruir a reputação do seu país, e sim do Estado austríaco — em especial a Áustria católica dos Habsburgo e sua herança, condenadas de maneira implacável. Reger é, assim, legítimo herdeiro de Bernhard, comprovando que a biografia é quase sempre o ponto de partida da ficção (a exemplo de Hemingway, de Joseph Conrad e muitos outros).

Thomas Bernhard
Mestres Antigos, de Thomas Bernhard (Companhia das Letras, 184 páginas, tradução de Sergio Tellaroli)

Publicado no Brasil pela Companhia das Letras (tradução de Sergio Tellaroli), “Mestres Antigos” conta a história de Reger a partir de um hábito: frequentar o Kunsthistorisches Museum, de Viena, e contemplar “O Homem de Barba Branca” (1570), pintura do mestre italiano Jacopo Robusti Tintoretto. Faz isso há 30 anos, dia sim, dia não. Reger se autodefine como “desocupado”, mas é crítico musical, aparentemente destrutivo e, certamente, misantropo. Sua renda provém do Times — para o qual escreve “pequenas obras de arte” — e do mercado de ações. As outras três pessoas que importam neste romance são Irrsigler, guarda do Kunsthistorisches Museum; Atzbacher, escritor e pupilo do crítico, e a esposa falecida de Reger, cujo nome não sabemos. Curiosamente quase não ouvimos as vozes deste trio silencioso, sufocado pelo monólogo interior do protagonista, que constitui por si só praticamente todo conteúdo de “Mestres Antigos”.

Irrsigler é um homem humilde, que em dias alternados permite a Reger se sentar por horas a fio no mesmo banco do museu, além de ter sido seu Cupido e “casamenteiro”. Por isso, apesar do intelecto limitado, é a pessoa com a qual o crítico se liga afetuosamente mais do que a um parente, a ponto de Reger pagar-lhe almoços caríssimos no Ambassador, o hotel onde passa as tardes. Ambos estabelecem uma relação “ideal porque “só se conhecem exteriormente”. (A profundidade, seja no conhecimento das pessoas ou da arte, só gera decepções, segundo Reger.) Uma vez que Irrsigler não pode cumprir um papel mais exigente, este é atribuído a Atzbacher, a “mente livre” de que nosso crítico musical precisa ou lhe resta, “vítima da compulsão de falar sobre questões teórico-musicais”, além de ser o presumível autor de “Mestres Antigos”, que vem a ser o registro desta compulsão. De longe a mais importante desses personagens é a esposa falecida, uma mulher rica e cultíssima que Reger considera ideal por ser “submissa” no aprendizado das letras.

Segundo Reger a arte é o refúgio daqueles que, iguais a ele, “odeiam o mundo”, mas seus interesses culturais são tão abrangentes que nos vemos diante de um tipo raro: o polímata. Homem de ideias, surpreende que toda cultura lhe pareça banal e destituída de qualquer valor: música, pintura, literatura, filosofia, além da imprensa, da decoração e muito mais. Reger deprecia desde Rembrandt até anúncio fúnebre. As diatribes desse insolente iconoclasta contra os professores, o Estado, o catolicismo, e os Mestres Antigos são saraivadas verbais, não importa a estatura do alvo, fuzilado um a um. Hoje em dia o próprio Reger seria alvo fácil do cancelamento por todas as celebridades da cultura, visto que a cultura contemporânea é (com a razão) a mais kitsch de todas. Contra a tagarelice e o diletantismo geral das pessoas e instituições, vamos achando que o próprio Reger é um tagarela sem fundamento. Não há como negar que sua loquacidade gera certo cansaço devido à sensação — e, mais ainda, a certeza — de que já o ouvimos dizer aquilo.

Não entendemos a razão de tanta depreciação nem tampouco porque o faz, até que finalmente ele nos dá um único e bom motivo que tudo relativiza (é preciso lembrar que, segundo confessa, “ninguém mente mais que aquele que escreve”). Mas, enquanto não chegamos nos finalmentes, é fácil suspeitar que tamanha aversão de Reger aos mestres antigos decorra do “total desespero com tudo e acima de tudo”, o que seria, então, por um motivo psicológico.

Reger não teve uma infância feliz, estabelecendo com os pais uma relação de absoluta indiferença e desprezo. Simbolicamente, mestres representam tutores. Pais nada mais são do que tutores, o que equivale, em sentido negativo, à autoridade repressora. Isso explicaria por tabela porque Reger é tão severo com as celebridades da cultura, uma vez que “odeia toda celebração”: no plano inconsciente elas evocariam os aniversários dos seus pais na infância, eventos que odiava. A premissa é que a criança era obrigado pelos pais a celebrar, a conclusão lógica é que o adulto amargo passou a odiar até os pais espirituais, tornando-se assim incapaz de celebrá-los. Reger só enxerga defeitos nos grandes artistas, na família, na igreja católica e no Estado porque tudo isso corporifica a autoridade original, fonte de seus sofrimentos. Uma vez adulto Reger — segundo o qual “Fazer um filho e dar-lhe vida, como se diz com tanta hipocrisia, nada mais é do que pôr no mundo uma grande infelicidade” — “enfiou-se na arte para escapar da vida”. Facilmente um leitor menos perspicaz apelaria a uma interpretação psicanalítica para Reger.

Procede, mas é secundário e enganoso. Pois, quando julgamos que ficará nisso, os trechos finais de “Mestres Antigos” avultam e deságuam em outro leito, muito mais profundo. O cruel balanço que Reger faz da cultura explica-se por uma razão existencial: “Sempre acreditei que a música significava tudo para mim, ou por vezes a filosofia, a alta, altíssima, suprema literatura, ou simplesmente a arte como um todo, mas tudo isso, toda a arte, qualquer que ela seja, não é nada comparada àquela única pessoa que amamos”, no caso, a esposa falecida há alguns meses.

“Mestres Antigos” não é um romance sobre as origens, mas sobre o fim. O que importa ainda mais do que a arte, nesta vida, é o amor. As pessoas que amamos e que nos amam. Incapaz de superar o luto da esposa, Reger manifesta conclusões nada surpreendentes, mas que, uma vez pronunciadas, assustam o leitor igualmente desamparado: “…precisamente nesse momento crucial somos abandonados por esses grandes e importantes, por esses imortais, como se diz, que nesse momento decisivo nada mais nos oferecem além da certeza de que, também em companhia deles, estamos sozinhos, entregues à nossa própria sorte, e num sentido absolutamente terrível”.

Nesse ponto da narrativa entendemos o método crítico-regeriano de “transformar tudo em caricatura”, e também porque “Mestres Antigos” é uma comédia e não um simples romance, segundo Thomas Bernhard. Tudo neste mundo é “ridículo e risível” porque ninguém é imortal e nada é eterno, nem sequer os “grandes mestres”. É bastante discutível a dívida do autor com o Livro de Eclesiastes, mas a conclusão é a mesma: tudo é vaidade. Tudo é solidão e desamparo absoluto diante da morte. Para o mestre da negatividade, Reger, nem mesmo os melhores artistas em sua opinião — Novalis, Mozart e Goya — deixam de ser risíveis, nesse sentido. Ficamos convencidos de que esse mundo é uma comédia e que a comédia, por sua vez, é um gênero muito triste. Tão triste que poderia ser um subgênero da tragédia.

Contudo — contudo! —, o instinto de sobrevivência revela-se neste homem solitário: “…de súbito queria sobreviver, não queria morrer, não queria acompanhar minha mulher em sua morte, e sim ficar aqui, neste mundo, disse Reger”. Em vez de se suicidar o grande recluso sai então às ruas para ver as pessoas, “porque só no meio delas temos alguma chance de sobreviver e não enlouquecer”. E é por isso também que, aos 82 anos de idade, Reger deixa o Kunsthistorisches Museum em companhia de Atzbacher disposto a tomar a rua novamente e continuar vivendo.

J.C. Guimarães

Crítico literário.