Há muitas razões para alguém, beirando os 40, querer mudar o curso do barco. Nessa fase da vida se supõe estar no meio da travessia, por isso a incerteza do rumo, do vento, do destino, da companhia a bordo. “Metade do caminho. Quantas coisas já deixei pelas margens do meu caminho. Coisas inteiras e pela metade. Ou quantas metades já teve o meu caminho. Ou quantos caminhos percorri de metade em metade.” Carlos Trigueiro, em “Memórias da Liberdade”, fez o que o homem ocidental faz quando chega no meio do destino. Pôs na balança a própria vida.
Para uma metade que transborda, sempre existe outra metade vazia. Não é fácil. Não é mole. Não é divertido. São muitos lugares, pessoas, histórias. Partidas, fragmentadas, remendadas, perdidas. Coisas que não terminaram, que mal começaram, que não se resolveram, e que provavelmente nunca se acertarão. Metades, ou nem isso, que o coração carrega sem a menor utilidade, como peças soltas de um quebra-cabeça envelhecido e empoeirado.
Não, o tempo não é mercurocromo. Ele não cura, apenas apazigua as dores e amorna os sentimentos. Algumas feridas permanecem abertas por décadas, enquanto outras não se costuram até o fim da linha. Mas o homem carrega. Ferimentos, cicatrizes, queimaduras. Foto amarelada, carta de despedida, cartão de aniversário, guardanapo com telefone e marca de batom. Carrega nas margens da memória, nas noites de insônia e no fundo do peito o peso do que foi e que não voltará a ser. Aos 40 o homem se torna uma caçamba de lixo abarrotada de entulho.
Por isso tantas crises. Por isso a necessidade quase primária de respirar outros ares, de abrir a janela, pôr a cara no vento, e sentir que a vida não se resume a um monte de contas para pagar, mulher, filhos, empréstimos e dívidas. Por isso a vontade extravagante de pecar contra as próprias regras que foram seguidas à risca por tantos anos. Por isso a curiosidade pelo que a vida oferece, mas que não foi aceito por medo de decepcionar as companhias e os companheiros. Por isso a urgência em esvaziar-se de tantas obrigações para encher-se de legítimos prazeres.
É nessa fase que o homem chuta o balde cheio do que não fez, mas que gostaria de ter feito. Se encoraja, toma fôlego, muda o corte de cabelo, se matricula na academia, faz uma tatuagem. Porque ele não aguenta mais puxar as correntes que a vida impõe. Começa a jogar fora metade da sujeira que lhe sobra e deixa para trás a metade que não lhe faz falta. Um respiro, um passo para o lado. Aos 40, andar paralelo ao próprio caminho é fundamental para não morrer soterrado debaixo do peso do próprio lixo.