Todo anglicismo será castigado

Todo anglicismo será castigado

Havia mais de um motivo para aliviar o stress, seguindo mais cedo para a happy hour: o meu check-up médico estava top, o papai estava on. Desembarquei num pub de atmosfera viril situado no subsolo de um decadente shopping center. No lobby, os meus olhos deram zoom num voluptuoso outdoor que estampava a foto de uma mulher de quadril magnífico deitada na posição da prece maometana sobre uma mesa de sinuca. O display do front-light piscava, dando significativas boas-vindas aos clientes: ENTER.

Entrei e me acomodei no balcão onde uma drag queen vestida como Marylin Monroe preparava drinks para clientes do sistema open bar. Tinha um sujeito sentado ao lado, com um band-aid pregado no nariz, em avançado estado de embriaguez. Sem que eu perguntasse, ele adiantou que a extravagante bartender tinha outro trampo durante o dia, trabalhando como motoboy para uma startup que fazia delivery de fast food para clientes com gordura no fígado e com intestinos irritáveis. Achei a explicação uma merda. O que não deixava de me irritar de forma intestina.

“Preciso comer alguma coisa mais light…”, comentei com o ébrio desconhecido, mas, o barman vestido com baby-doll de lycra olhou-me mais esperançoso do que eu realmente desejaria. Ele disse que aquilo ali não era uma igreja, então, me ofereceu cheeseburguer, hot-dog com ketchup e milk-shake diet como sobremesa. Eu disse okay baby e pedi que me fizesse um cocktail de whisky com cranberry, que são aquelas frutinhas vermelhinhas miudinhas típicas da flora da América do Norte.

Peguei o smartphone para checar o e-mail e para deletar fake news postadas na minha timeline por fascistas da geração new age, mas, o sinal da internet estava punk. Perguntei pela senha do Wi-Fi para o traveco que arrancava polpas de frutas de dentro de um freezer. Apesar de sexy, Marylin foi um tanto esnobe ao me dar um feedback usando o manjado slogan “Não temos sinal de Wi-Fi, conversem entre vocês mesmos”. Conversar como, se havia ali um aparelho de som high-tech tocando um medley de hits da música pop em altíssimos decibéis?

O telão digital alternava trailers de filmes clássicos com imagens de surf, windsurf, bike, mountain bike e esportes de alta performance praticados em ambiente indoor — sexo, por exemplo. Apontei a câmera do mobile para o QR Code pregado no balcão, o qual fez um link direto com um portfolio de strippers e com homepages de sites pornográficos. Diante da impressionante estratégia de marketing daquele inferninho, tive um insight salvador: Mulheres eram demônios que liam as mentes. E a minha esposa tinha handicap, tinha know-how em matéria de sexto sentido, ao sentir, de longe, o cheiro do shampoo e da mentira. Decidi gozar o vale-night caminhando pelo salão.

O ambiente estava caótico e animado. A proporção entre homens e mulheres era de dez para uma, isso sem contar a Marylin. Não demorou muito tempo, o álcool sopitando das cabeças, um sujeito colocou outro em knock-out, desferindo um punch de direita no seu queixo. Ambos estavam out: foram jogados para fora do muquifo por policiais à paisana que faziam freelance como seguranças de prostíbulo. O tipo de cena com potencial para me deixar blue. Porém, não me permitiria entristecer. Um pouco mais adiante, uma aglomeração de indivíduos assistia ao show de top models seminuas que se atracavam dentro de uma banheira com espuma. O espetáculo afrodisíaco lembrava um programa de auditório que passava pela TV nas tardes de domingo para entreter as famílias. Pena que foi retirado da grade de programação.

No meio daquela esbórnia, acabei encontrando, por acaso, um amigo que era também um escritor. Não sei se foi pelo efeito dos flashes, mas, o seu rosto parecia deformado pelo excesso de botox; e a sua literatura, pelo excesso de anglicismo. Escrevia livros enfadonhos que nunca se tornariam best sellers. Então, para não ter que mendigar ou se prostituir, trabalhava full-time como ombudsman de uma holding de telefonia, um emprego infernal, pior do que dar banho em defunto ou que virar digital influencer.

Depois da gente explicar, um para o outro, o que era mesmo que estávamos fazendo num lugar tão tosco quanto aquele, seguimos para uma sala mais silenciosa, onde havia migrantes rebolando nuas sobre as mesas e rapazes jogando videogame. Perguntei ao jovem escriba se estava produzindo algo, se tinha livro novo no grelo, quer dizer, se tinha livro novo no prelo. Ele disse que não queria dar spoiler, mas, tinha, sim, finalizado um romance de mistério, ou melhor, um thriller que se passava dentro duma academia de letras na qual os imortais estavam sendo mortos para ceder as suas cadeiras para outros candidatos à imortalidade de menor estofo literário.

Apesar do prurido que eu sentia nos ambientes acadêmicos, achei o script um tanto patético. “Já que nunca seremos eleitos para uma academia de letras, vamos, ao menos, nos divertir um pouco sacaneando os imortais”, ele disse, arrancando de mim estrepitosas gargalhadas. Costumávamos fazer bullying com os velhotes acadêmicos que cochilavam — alguns até faleciam, sem que alguém percebesse — durante os intermináveis saraus de poesia ruim.

O vaidoso colega disse-me que tinha acabado de completar vinte e sete anos de idade, que estava ali comemorando o seu aniversário sozinho, algo que ia muito além da masturbação como hobby. Não tenho certeza se ele falou aquilo no sentido figurado. Ele se dizia apto, pronto para morrer de overdose a qualquer momento e, finalmente, entrar para o tão almejado hall da fama: o maldito Clube dos 27. Para não perder o timing, eu ressaltei que a regra — não a regra menstrual, mas, a regra do Clube dos 27 — não se aplicava a escritores como nós, ainda que não fôssemos medíocres, mas, tão somente aos astros do rock and roll. Caímos. Rolamos. Gargalhamos prestes a encharcar os fundilhos o choro incontinente das nossas bexigas repletas de mijo.

De repente, uma confusão. A turba agitou-se. Os spots foram acesos. A música, desligada. Agindo como haters, policiais de verdade invadiram o estabelecimento distribuindo spray de pimenta no focinho da clientela: jovens inconsequentes e pais de família em busca de diversão fora do casamento. Por meio de um walkie-talkie, um milico enorme, obeso, espadaúdo e arrogante, que parecia o responsável pela Operação Desmancha Prazer, anunciou que o escritor responsável pela concepção daquela história bizarra, permeada de verbetes da língua inglesa, tinha um minuto — just one minute — para se entregar. Foi assim que o texto terminou morrendo, o que me deixou extremamente down.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.