Não dá para viver de meias medidas, foi o que concluí depois de uns goles de vinho barato. Se a bebida fosse boa, talvez tivesse me mantido na humildade fabricada dos muito abastados. Mas há dias em que se está mais corajoso que o normal. Dias em que metas são traçadas e sonhos são sonhados. Tudo sem muita modéstia, tem dias em que se acorda para ser grande.
Como meta, determine: um amor só servirá se tiver olhos de ressaca. Não me leve a mal, dispensa-se interpretação de academia, basta ser entusiasta dos gostos desse autor pela bossa que há num amor visceral. Machado pintou os olhos de um amante ideal, um amor para a vida toda, um oceano particular. É bem verdade que a amante trouxe a ele a ira da dúvida, mas seus olhos, ah, os olhos… Ali havia dúvida de nada.
Não lhe acudiu imagem capaz de dizer, sem quebra de dignidade do estilo, o que os olhos de Capitu foram e fizeram. “Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.”
No cardápio de amores, aceite só esta opção: um amor cujos olhos sejam ondas de maré forte, capazes de dragar e naufragar até mesmo o navio mais sólido. Queira colaborar com a miséria, empurre junto o navio mar adentro e nade de braçada. De que servem olhos de ressaca senão para se afogar?
Bentinho fingiu resistência, fez-se de rogado, quis — por um segundo — enganar-se a si. Fingiu que era dor a dor que deveras sentia, o pequeno grande Bentinho. Mas é que compensa fingir perseverança frente ao abate da onda impiedosa, pois que se lhe dá resistência para que sugue, ainda com mais força, o olhar de cordeiro manso às profundezas do que não tem fundo.
“Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.” — choromingou Machado pelos olhos de Bentinho. Pobre ser. Não há cabelos, nem braços, nem orelhas que segurem a força da ressaca. Todo rio forte corre para o mar ou morre antes da hora. Se for para ter um amor, que ele seja capaz de brotar névoa onde há refúgio e apagar qualquer saída que não seja mar aberto.
“Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.” Que o tempo seja infinito, que a certeza não seja breve e, se for para ter um amor, que ele só venha se tiver olhos de ressaca.