Ainda temos no Brasil poucas notícias sobre Dag Solstad, escritor norueguês atualmente com 84 anos de idade. Quando falamos de Noruega nossas referências culturais são outras: Henrik Ibsen, talvez o maior dramaturgo desde Shakespeare, e Edward Munch, precursor do Expressionismo e autor de uma das pinturas mais famosas dos últimos 130 anos, “O Grito” (1893). O representantes literários que lembramos, dessa cultura, é o último laureado com o Prêmio Nobel, Jon Fosse (o país acumula quatro prêmios nessa categoria), e mais ainda Karl Ove Knausgård, cuja obra foi amplamente traduzida no Brasil. Quase nada sabemos a respeito de Dag Solstad.
Autor de extensa obra literária (mais de 30 livros), Dag Solstad publicou aos 47 anos o surpreendente “Romance 11 livro 18”, editado no país por uma pequena editora, a Numa, em 1997. É, portanto, obra de um autor maduro, no pleno domínio de seu metier. A tradução ficou a cargo de uma expert também norueguêsa que se instalou no Brasil, Kristin Lie Garrubo. Podemos, portanto, confiar nas equivalências linguísticas, das quais muito depende o crédito da ficção literária.
“Surpreendente” é de fato a primeira palavra que me ocorre para definir “Romance 11 livro 18”, título enigmático que não sugere nada a respeito da obra em questão, relativamente pequena, 154 páginas, apenas. Do ponto de vista estrutural, o livro aliás não tem capítulos, muito embora seja possível estabelecê-los mentalmente — o que independe do autor. Assim, a história de Børn Hansen, o protagonista, divide-se entre o amor, a amizade e a paternidade e, por fim, o “plano” secreto, momento que eleva a narrativa a um outro patamar. Cada um desses capítulos imaginários tem seus próprios coadjuvantes: no Amor temos a esposa ligeiramente esboçada, Tina Korpi, e a amante Turid Lammers; na Amizade e paternidade entram em cena o dr. Herman Busk e o filho Peter Hansen, e no Plano quem atua ao lado de Børn Hansen é o dr. Schiøtz, principalmente. Tais capítulos imaginários têm interesse autêntico, mas o último independe dos dois primeiros. E é onde, a meu ver, localiza-se o núcleo da trama.
Børn Hansen é servidor público em uma comuna norueguesa que existe de fato, Kongsberg, para onde se mudou depois de se apaixonar pela atriz Turid Lammers, ali residente. Ele está com 32 anos e viverão juntos por 14 anos, até que a beleza física dela se desfaz. Nesse período, sob influência de Turid Lammers, Børn Hansen vira o tesoureiro municipal e depois intérprete de teatro amador. Na companhia em que atuam, formada por figuras conhecidas da sociedade local, Børn Hansen conhece o dentista Herman Busk e o médico dr. Schiøtz, a quem procura por se sentir incomodado com algumas dores. A essa altura já passou dos 50 anos de idade, e é nesse momento que vem ao seu encontro o filho que tivera com Tina Korpi, Peter Hansen: a pessoa que estava esperando na estação de trem de Kongsberg, nas três primeiras linhas do livro.
A soma de todas essas experiências revela muito, do ponto de vista de Dag Solstad, sobre os temas que já mencionamos: o amor (conjugal e filial) e a amizade, mas também sobre a solidão. Essa parece ser a condição fundamental do tesoureiro Børn Hansen, um tanto deslocado dos interesses e comportamentos convencionais.
Nem mesmo em Peter Hansen, o filho amado mas com o qual possui uma relação ambivalente, Børn Hansen consegue enxergar senão um estranho, apesar de tudo fazer pelo seu bem estar. Peter, assim como Turid, são personagens vívidos, caprichosamente elaborados — mas sua importância na economia da obra é ancilar. Apesar de muito bem escrito, “Romance 11 livro 18” é uma história de acontecimentos comuns até pelo menos a p. 64, quando então se adensa. Os personagens que realmente interessam — o próprio Børn Hansen e o dr. Schiøtz — entram para valer em cena a partir desse ponto, e sua atuação é tão magistral que possivelmente deixaria o grande Henrik Ibsen satisfeito. Bem melhores na vida “real” do que enquanto atores de opereta, no teatro de Lammers!
Enquanto explora o amor, vivendo ao lado de Turid Lammers, Dag Solstad lembra vagamente o Milan Kundera de “A Insustentável Leveza do Ser”. Porque parece um narrador realista, de pés firmemente plantados no chão. Mas “Romance 11 livro 18” é um livro que se transforma em outra coisa, ao se adensar psicologicamente. Convence-nos enquanto thriller psicológico. Esse adensamento se dá no primeiro contato de Børn Hansen com o dr. Schiøtz. Em dado momento, quando este sai do apartamento de seu paciente, Børn rumina consigo mesmo, apesar de estar fisicamente saudável:
“Tinha algo a ver com ele não ser capaz de se conformar com a ideia de que era só isso. Ela o deixava revoltado. Não queria tolerar isso. Precisava mostrar de alguma maneira que não iria tolerar isso. E, portanto, concebeu um plano. Um plano insano, que pensou em apresentar ao dr. Schiøtz a próxima vez que aparecesse. Por meio desse plano, colocaria em prática seu Não, ou a Grande Negação, que era como havia começado a chamá-lo…”
Ao que parece, então, a verdadeira assistência de Ibsen não é casual, tampouco a citação a “O Pato Selvagem”. Segundo Otto Maria Carpeaux, esta peça é “uma sátira trágica, retrato de um medíocre que precisa da mentira para viver”. Talvez seja o bastante para associarmos Hjalmar Ekdal, poeta frustrado de “O Pato Selvagem” — papel aliás interpretado por Børn Hansen na peça que encenam, de Ibsen — ao próprio destino. A partir desse ponto, Dag Solstad revela-se um mestre da enganação, mostrando-nos porque a grande literatura é pura magia. Como folha ao vento, o leitor é trapaceado quando lê “Romance 11 livro 18”. A expectativa do que virá depois desse primeiro monólogo é deixada em suspenso com a chegada de Peter Hansen, o filho egresso das forças armadas para estudar optometria em Kongsberg.
Mas, mesmo no relacionamento com o filho, aquela profundidade psicológica se manifesta, como quando Børn Hansen pensa, com antipatia: “Peter come minha comida, que faça bom proveito”. Mesmo que naturalmente tenhamos pensamentos inconfessáveis sobre as pessoas, mesmo as mais íntimas e queridas, ouvir um terceiro desnudar essa tendência natural é por demais inquietante. Revela que até o inominável faz parte do estado normal de nossa consciência. Não é nenhuma novidade, mas é sempre impressionante quando é bem escrito. Em mar aberto, Dag Solstad beira Dostoiévski nos momentos em que explora a mente humana, em particular a do dr. Schiótz (145), o médico toxicodependente a quem Børn Hansen atrela para sempre o seu destino, a ponto de se considerar “uma obra” dele. Primeiro Børn Hansen acredita ter enlouquecido e que o médico e cúmplice agiu por ganância, que é um motivo desprezível. Ou terá sido motivado por algo pior e mais horroroso, de sua natureza? Em matéria de não-dito, de mistério e suspense, Dag Solstad é diversão garantida.
Aos poucos ficamos sabendo no que consiste o tal plano e quais suas consequências dramáticas e irrevogáveis, mas o narrador insiste em que as motivações tanto de Børn Hansen quando do dr. Schiøtz não são claras, apesar da Grande Negação supracitada sem um motivo e tanto. O vazio existencial, a insignificância, o tédio, o inconformismo — tudo isso contribui para a Grande Negação, talvez uma busca de sentido para a vida, que se esvai sem grandes feitos (Børn Hansen tem 51 anos e começa a pensar seriamente na morte). No fim das contas, o plano é um papel que cria para si mesmo: assim — e pelas razões que o leitor descobrirá — “Romance 11 livro 18” é na verdade uma grande farsa.
Com aquele ato supremo Børn Hansen vai se revelar um brincalhão, jogando com o teatro da vida — ou, antes, encarando a vida literalmente como teatro.