Era páscoa. Conhecia o Torquato — ou não — há quarenta e cinco anos. O nosso encontro aconteceu numa tradicional pizzaria da cidade, tempos depois da eclosão do ovo da serpente, que tinha dado vida e ascensão meteórica à extrema-direita política no país. Ele era um pouco mais velho do que eu, um amigo das antigas, um dos homens mais gentis, probos e educados com quem tive o privilégio de conviver.
Tratava-se de um renomado médico especialista em panças, rúmenes, baços e embaraços intestinais, mas, soltou-me uma das pregas, ou melhor, soltou-me uma pérola ao bancar a informação de que havia um novo, misterioso e mortal vírus chinês chegando ao país, o qual comeria as pessoas pelo cu. Pensei que aquilo fosse uma espécie de piada, mas, ele falava a sério. Poderia ter utilizado a expressão ânus, para soar de forma mais elegante, catedrática, contudo, suponho que tivesse mesmo a intenção de me chocar com a estarrecedora novidade. Morrer pela boca, tudo bem; pelo cu, nem pensar. Acontece que as manjadas estratégias de disseminação de notícias falsas não funcionavam para um esculápio como eu, um ordinário doutor da rede pública de saúde, experimentado na lida com glândulas, gretas, grutas e xuranhas.
Religioso até debaixo de um lençol — comadre, a sua esposa, inesperadamente, confidenciara-me, certa feita, que eles nunca, jamais tinham se permitido ver completamente nus —, eu tomara conhecimento de que ele migrara da ala radical da igreja católica para uma igreja evangélica que mantinha negócios em todo o território nacional. O nome na agremiação religiosa eu não quis sabê-lo. Conversa vai, conversa vem, descobrimos um fio de cabelo que não era nosso enroscado na mozarela. Rodamos a baiana. Fizemos uma cena. Exigimos a troca imediata da pizza. Dos copos. Das mulheres, não. Elas não estavam presentes no estabelecimento, para a nossa sorte.
Os aborrecimentos não paravam por ali. À certa altura da noite, Torquato surgiu com a conversa de que já tinha se decidido pela compra de uma arma de fogo. Uma arma? Uma arma para quê, criatura? Tá pensando em sem matar? Em matéria de amizade, nem tudo estava perdido. Torquato ainda não tinha abandonado o hábito do etilismo social comedido que datava desde os idos tempos da nossa adolescência. De tal sorte que degustávamos com muito prazer um excelente Cabernet Sauvignon chileno, sem a preocupação de padecer duma tétrica cefaleia na manhã do dia seguinte. O álcool foi destravando as nossas línguas aos poucos. O que não deixava de se constituir num considerável risco.
Ele justificou que vivíamos tempos de ditadura, portanto, havia a necessidade premente de adquirir o pau-de-fogo para proteger a sua casa — um patrimônio material composto por paredes, telhado e jardim de inverno — a si próprio e aos seus familiares. Eu nutria pelo Torquato uma admiração genuína, o típico sentimento de idolatria de um irmão mais novo pelo irmão mais velho. Era também um dos sujeitos mais calmos e pacíficos que eu já conhecera. Ao contrário da maioria dos moleques, jamais havia trocado sopapos com os rivais dos tempos de escola.
Portanto, eu não concebia o Torquato com um 38 na mão. Justamente, ele que amava jardinagem e que já tinha extraído inumeráveis balas dos corpos de seus pacientes. A confidência me pegou de surpresa. Torquato era uma moça, mas, por favor, não deixem que ele saiba disso. Lamentavelmente, ainda sofre de graves rompantes de homofobia, a ponto de por para correr de casa o filho efeminado. Torquato parecia dissertar a partir de um universo paralelo, demonstrando irritabilidade ao me alertar sobre a suposta ameaça comunista que solapava o país. Esvaziei a minha taça numa só talagada. Tinha calculado deixar o último pedaço de pizza para ele, mas, estava aturdido demais para agir com tamanha cortesia. Então, garfei a fatia morna que nos assistia com olhinhos de perplexidade.
Eu disse Torquato você nunca foi disso, você nunca atirou nem mesmo com um revólver de espoleta, quem dirá com uma arma de verdade. Você tá ficando doido, companheiro? Ele pediu para não ser chamado novamente de companheiro. Parecia coisa de comunista. Então, comentou que tinha condições financeiras e psíquicas para atirar em coisas e em pessoas, para assustar, ferir e, até mesmo, para matar outro ser humano, se necessário fosse. Aliás, alguém da igreja tinha inaugurado um clube de tiro na periferia da cidade, que estava abarrotado de famílias inteiras interessadas nas técnicas do manuseio patriótico de armamentos, desde velhos e crianças, até grávidas e aleijados. Lembrei ao Torquato que o termo aleijado andava em desuso, que tinha sido substituído pela sigla PCD (Pessoa Com Deficiência). Ele comentou que sabia disso mas que andava farto de tanto mi-mi-mi.
Arrisquei tudo. Procurei surpreendê-lo ao tocar no seu ponto fraco: a fé. Afirmei que Jesus Cristo certamente não aprovaria a sanha armamentista da sociedade civil, o olho-por-olho e o dente-por-dente apregoados pelo Velho Testamento. Percebi que ele ficou confuso, abismado mesmo, a ponto de se engasgar com a massa grossa da pizza. Acabou estapeado nas costas pelos bíceps generosos de um leão-de-chácara, para que expelisse de volta o fragmento sufocante. Torquato inspirou profundamente. Seus lábios ainda estavam roxos. Olhou para o teto. Tinha uma enorme mancha de mofo nele. Benzeu-se com as mãos entrelaçadas, comovidas. Secou as lágrimas num lenço de tecido — quem ainda usava lenços de pano em pleno século 21, senão para secar o sangue do cordeiro?
Apesar do incidente gastronômico, não recuei nos meus argumentos. Aproveitei aquele momento de vertigem. Reiterei que O Messias vivera como um autêntico revolucionário, um anarquista, uma espécie de socialista, por que não, ao pregar o amor universal, a justiça social, o perdão, a tolerância e a igualdade entre os homens. Valendo-me dos parcos recursos das aulas de catequese da minha infância, ressaltei que Jesus Cristo abominava o ódio e a violência, apesar de ter expulso a pontapés os vendilhões do templo.
Torquato disse amigo, você não me engana, sei que é um homem sem fé, um ateu, uma ovelha desgarrada, sinto muito, entenda, eu te amo, mas, você não possui o estofo religioso requerido para me instruir sobre esse tipo de assunto. Então, exausto, pediu a conta. Tinha prometido à esposa chegar em casa antes das 10. Parecia um acordo justo. E conveniente. Pagamos ao garçom. Ao conferir a gorjeta, o rapazola agradeceu de forma eloquente e falou ao Torquato que votaria no mesmo candidato dele, algo que, para mim, soou deveras lastimável, pois, se tratava de um jovem eleitor declarando o seu voto num candidato neofascista que desprezava a democracia. Não restava mais tempo. Nem argumentos. Abraçamo-nos. Cambaleamos pela calçada. Cada um pro seu lado. E nunca mais nos vimos desde então.