Acordo pela manhã e ligo a TV. Está passando a reprise de uma reportagem sobre violência obstétrica. Sem pensar muito, mantenho essa coisa ligada. Ao som dos depoimentos das vítimas de um médico famoso, coloco um pouco de água para ferver e despejo duas colheres de café dentro de um copo americano. Quando a ebulição finalmente acontece, desligo o fogo e despejo a água sobre os grãos previamente moídos. De acordo com a “National Coffe Association”, a temperatura ideal para o preparo está entre 90° e 96°, mas um café solúvel não é digno dessas minúcias.
Enquanto verto a água, me vem um sentimento de plenitude e euforia, como um Golden Retriever deve se sentir diante de uma piscina. É uma felicidade estranha, aparentemente sem razão de ser. E agora, escrevendo sobre isso e refletindo com calma, lembro-me de uma observação de Ortega y Gasset, logo no começo das “Meditações do Quixote” (1914): “É frequente nos quadros de Rembrandt, um humilde pano branco ou cinza, um grosseiro utensílio doméstico envolver-se numa atmosfera luminosa e irradiante que outros pintores imprimem somente ao redor das cabeças dos santos. Como se nos dissesse em delicada sugestão: Santificadas sejam todas as coisas! Amai-as, amai-as!”.
O filósofo espanhol prossegue no seu argumento, dizendo que “o amor nos une às coisas, ainda que passageiramente.” E não só isso: “O amor é um divino arquiteto que baixou ao mundo — segundo Platão, ‘a fim de que tudo no universo viva em conexão’”.
Assim como o miojo ou o Tinder, o café solúvel é uma invenção motivada pela supremacia da praticidade sobre a qualidade; é o tipo de coisa que leva as pessoas a recitarem como um mantra a frase do psiquiatra escocês, Ronald David Laing: “A vida é uma doença sexualmente transmissível que tem cem por cento de taxa de mortalidade”. No entanto, naquela manhã, foi essa simples invenção que fez eu me sentir conectado com o mundo, que me fez, por um instante, amá-lo (do modo descrito por Ortega y Gasset). Se tivesse habilidade, comporia um haikai para “fotografar” o momento. Como me falta, escrevo este texto.
Há, é claro, uma contraface desse sentimento elevado. Trata-se de um velho conhecido da humanidade, de Caim e Abel às ameaças de um holocausto nuclear: o ódio. Segundo o filósofo espanhol, esse estado de espírito se traduz numa inconexão. Ele escreve: “A inconexão é o aniquilamento. O ódio fabrica inconexão, isola e desliga, atomiza o orbe e pulveriza a individualidade”. E continua: “Quando odiamos algo, colocamos entre nossa intimidade e o objeto uma impiedosa cortina de aço que impede a fusão, mesmo transitória, da coisa em nosso espírito”.
A vida humana é, então, uma tensão constante entre o amor e o ódio, entre conexão e inconexão. Há pouco tempo, finalizei a leitura de “Homens Sem Mulheres” (2014), de Haruki Murakami, o eterno candidato ao Nobel de Literatura. E creio que o escritor japonês retrata bem a complexidade dessa dinâmica existencial nos sete contos que compõem o volume: “Drive my car”, “Yesterday”, “Órgão independente”, “Sherazade”, “Kino, “Samsa apaixonado” e “Homens sem mulheres”. Todas as histórias seguem a premissa do título — que, curiosamente, é o mesmo da segunda coletânea de contos de Hemingway, publicada em 1927 — vale dizer: é sempre sobre um homem que sofre por ter perdido uma mulher, ou pela antecipação de que isso aconteça.
Dentro dessa temática, Murakami reflete sobre luto, culpa, rancor, solidão… Nenhum sentimento parece escapar da sua pena melancólica e das suas metáforas imprevisíveis. O primeiro e o terceiro conto são muito impactantes. No primeiro, “Drive my car”, que deu origem ao filme homônimo, ganhador do Oscar, acompanhamos o luto do protagonista, um ator consagrado que acabou de perder a mulher para uma doença. Ele sempre soube que ela o traía, mas jamais tocou no assunto durante o casamento. Após a sua morte, decide contatar o último de seus amantes, um ator mais jovem que ele.
Num certo dia, Kafuku, o protagonista, convida o ex-amante da mulher para beber. Os dois acabam criando uma espécie estranha de amizade durante algum tempo, afinal eles compartilham o luto pela mesma mulher. O jovem ator não faz ideia de que o viúvo tem conhecimento das relações que ele mantinha com sua esposa. Ao longo das conversas, Kafuku tenta identificar o que o ex-amante tem que faltava nele. O que ele tem de tão especial que causou a “ruptura” no seu casamento, a falta de amor de sua mulher, ou, como descreveria Ortega y Gasset, a “inconexão” dela em relação a ele.
O terceiro conto (“Órgão independente”) é sobre um médico rico que passa a vida como um eterno amante, jamais se envolvendo em um relacionamento sério que exija dele algum tipo de responsabilidade. Tudo muda quando ele se apaixona pela primeira vez (e o que é pior: não é só paixão, é amor). A partir desse momento, ele experimenta o sentimento que Ortega y Gasset descreve nas primeiras páginas das suas “Meditações do Quixote”: “O que dizemos amar se nos apresenta como algo imprescindível. O amado é, de pronto, o que nos parece imprescindível. Imprescindível! Quer dizer que não podemos viver sem ele, que não podemos admitir uma vida na qual nós existíssemos e o amado não — que o consideramos parte de nós mesmos”.
Mas depois de cinquenta anos levando uma vida de egoísmo, o médico não consegue lidar com esse rompante de amor. Não havia em seu sistema os mecanismos necessários para digerir essa espécie de sentimento. Desse modo, ao invés de vivenciar de forma saudável esse impulso que “nos une às coisas”, nos termos platônicos utilizados por Ortega y Gasset, o médico escolhe a negação, trava uma guerra contra a sua recém-descoberta capacidade de amar. Quando, finalmente, a mulher (que era casada) o deixa por outro amante que ela tinha em segredo, ele adoece.
O médico para de comer completamente. Uma inanição que não é de todo “voluntária”. O que ele pode fazer? É um homem, cujo coração partido retirou toda a força vital. No começo do conto, é apresentado como um personagem metrossexual, que sempre cuidou de si. Agora, não resta mais sentido nisso tudo. A mulher foi embora e, junto com ela, a própria ideia de “eu” do protagonista. A sua identidade se perde. Por não saber lidar com a “conexão” trazida pelo amor, quando esse sentimento chegou ao fim, deu lugar a uma hedionda “inconexão” com o mundo e com ele mesmo. É claro que o conto termina com a sua morte.
Como não poderia faltar num livro de Murakami, há várias referências aos Beatles e a Kafka (respectivamente, em “Yesterday” e em “Samsa apaixonado”). O conto “Sherazade” (que também inspirou o filme “Drive my car”) traz a história de uma garota que invade, de tempos em tempos, a casa de um colega de classe, pelo qual é apaixonada. Em cada uma das invasões, a menina leva um objeto e deixa outro no lugar. Já o conto “Kino” retrata um homem tentando lidar com o luto do fim do seu matrimônio, que foi sepultado pelo adultério da esposa. A trama traz vários elementos de realismo fantástico, é uma história típica de Haruki Murakami. O conto final, cujo nome intitula a coletânea, é menor que os demais e consiste nas reflexões de um homem que acaba de saber que sua antiga namorada cometeu suicídio. O protagonista vivencia a frase de Woody Allen: “Só há um tipo de amor que dura, o não correspondido”.
Em entrevista concedida ao “The New Yorker”, quando perguntado sobre o significado de seu livro, Murakami esclareceu: “O que eu desejo transmitir nesta coletânea é, numa palavra, ‘isolamento’, e o que isso significa emocionalmente”. Esse “isolamento” é o sentimento dominante quando se é deixado pelo ser amado, é o que sentem “os homens sem mulheres” e é também a “inconexão” descrita por Ortega y Gasset. Às vezes, para recuperar a conexão com o mundo basta um gole de café solúvel.