Não deixa de ser uma tragédia que, há 21 anos, indivíduos em situação de rua sejam recrutados para um torneio internacional de que quase ninguém, sequer o mais apaixonado fã do esporte bretão, toma conhecimento. Observado este detalhe, “Jogo Bonito” é uma história inspiradora sobre temperança, destemor e a eterna capacidade do homem de reinventar-se e buscar alívio para seus tormentos. A diretora Thea Sharrock encontra o tom perfeito para narrar um conto de fadas diferente, atual e protagonizado por marmanjos, em que a bola é o talismã capaz de abrir a porta de universos mágicos a quem conta apenas consigo mesma, embora sempre termine por achar seu guia.
Aos poucos, Sharrock revela minudências em torno da Copa do Mundo dos Sem-Abrigo, que desde 2003 reúne cerca de setenta países e 1,2 milhão de atletas — o que, de novo, causa espécie. O roteiro de Frank Cottrell Boyce vai num crescendo até que os muitos personagens e seus tantos conflitos estejam satisfatoriamente apresentados, e então nos atira um rol de cenas nas quais a técnica e o apuro da beleza congregam-se em nome do sentimento.
Fazer o bem deveria ser a única escolha diante da obviedade de se viver tão perto de alguém cheio de carências. Todavia, como nada é perfeito, gestos de caridade começam a ser encarados como uma manobra de autopromoção, o que envenena um tanto a relação de quem doa e quem recebe, que só resiste porque verdadeira — e sustentada pelo dinheiro de filantropos cuja identidade permanece secreta.
Aos poucos, como se fossem membros de um mesmo organismo, essas partes tornam-se ainda mais ajustadas, compondo um todo inquebrantável, que medra, toma conta das mentes e dos corações, feito se o mundo estivesse sendo, enfim, submetido às transformações de que tanto precisa. O mundo é muita gente, e leva algum tempo até que todos nos convençamos de que somos mesmo uma grande família, ligada por um elo incorpóreo e forte demais para se romper só porque um ou outro ressentido assim o deseja.
Mal já teve seus dias de glória; entretanto, segue de queixo para cima ao treinar a seleção de sem-teto da Inglaterra (uma imagem que custo a elaborar aqui com os meus botões, confesso). A diretora faz com que seu filme oscile junto com a aparente disputa de liderança de Mal, na pele de um Bill Nighy surpreendentemente perturbador naquela sua serenidade enganosa, e Vinny, o garoto-problema vivido por Micheal Ward. Os dois têm trajetórias de sofrimento, cada qual a seu modo, claro — assim como as figuras que os circundam — e cativa o expediente usado por Sharrock funde as duas vidas, manobra que explica lançando mão de um MacGuffin no desfecho.
Filme: Jogo Bonito
Direção: Thea Sharrock
Ano: 2024
Gêneros: Drama
Nota: 8/10