Era tarde da noite quando a tela do telefone brilhou silente na escuridão do quarto. Era o Torquato.
“Meus amigos, minhas amigas, infelizmente, Deus levou a nossa filha Clara, a Clarinha, médica veterinária, a caçula de uma prole de quatro, o que era para ser uma festa, um encontro da família no litoral capixaba, culminou numa infecção misteriosa, grave, incontrolável, durante uma internação que se arrastou por dez dias e, hoje, por volta das oito horas da manhã, o coração dela parou, as nossas vidas pararam, ao contrário da morte, que ainda segue firme e forte, atazanando muitas das vezes, punindo, testando, embrutecendo, agradecemos a todos pela força, pelas manifestações de carinho, pelas orações, ela lutou dia e noite, eu estava lá, eu e uma equipe incansável de excelentes profissionais de saúde, todos engajados em resgatá-la, não é fácil ver uma pessoa sucumbir no auge da juventude, ela, a nossa Clara, meu Deus, por que isso tinha que acontecer, ela brigou tanto para continuar viva, sou testemunha, mas, a doença foi mais forte e venceu, ainda não sabemos quando o corpo chegará em Campos dos Goytacazes, nem a data do velório, da missa, do sepultamento, no momento, estamos administrando o nosso imenso fracasso, o maior de nossas vidas, sem dúvida, Duda, a mãe, minha companheira desde os tempos da faculdade de medicina, passou o dia inteiro anestesiada sob o efeito de chás, de rezas e de remédios, estamos providenciando a papelada toda, a urna, a roupa, o preparo do corpo que nem mesmo se parece com o dela, o traslado e alguma paz de espírito que aplaque minimamente a nossa ruína, fiquem todos com Deus, apesar de tudo, a despeito do nada que sempre nos resta como uma espécie de consolo, uma resposta vazia, comezinha e sem sentido, não se preocupem conosco, estamos bem, na medida do impossível, sabemos que tudo é uma questão de tempo e de fé, que o sofrimento não é exclusividade nossa, que a vida é um mistério, que a morte possui um tremendo mau gosto, são coisas que acontecem, vamos superar a falta da Clarinha protetora dos animais, com a ajuda de vocês, o desespero vai passar, a lembrança, cláusula pétrea da constituição amorosa, vai persistir cálida, sentida, assim funciona a vida, não somos marcianos, nada dura para sempre, fazer o quê, quem ama sofre, cuidem-se, meus caros amigos, minhas caras amigas, desculpem pelo incômodo da notícia ruim à essa hora da noite, não tinha outra forma, em breve a gente se vê, mesmo desagradável, esparramem a má nova por aí, por favor, mas, não se desesperem, não vale a pena, vai ficar tudo bem, um dia, quem sabe, sim, com toda certeza, saúde, paz e bem a todos, boa noite, com amor, Torquato.”