A música está ligada ao cinema desde as primeiras exibições públicas de filmes, no final do século 19, com as obras dos irmãos Lumière. A princípio, como as películas eram mudas, as projeções na tela eram acompanhadas por um pianista instalado na sala de cinema. O passo seguinte foram gravações de músicas que eram reproduzidas em aparelhos fonográficos e sincronizadas com o filme.
Esse casamento entre cinema e música ganhou um grande impulso no final da década de 1920, quando a película cinematográfica ganhou sua banda sonora, que inclui diálogos, música e efeitos sonoros. Agora, som e imagem compartilhavam o mesmo meio de reprodução. E o termo trilha sonora passou a definir a música que se ouve em um filme, seja ela especialmente feita para a obra cinematográfica ou já existente. Ou então uma combinação dos dois tipos.
Ao longo dos mais de 100 anos de cinema, a música foi utilizada de diversas maneiras, porém existem casos em que a combinação entre as duas artes está no centro das atenções dos cineastas. E um desses realizadores é o inglês Ken Russell (1927-2011).
Russell ficou conhecido por seu estilo polêmico e espetaculoso e, também, por ter realizado a cinebiografia de vários compositores de música clássica: Elgar, Debussy, Tchaikovsky, Mahler e Liszt, entre outros.
Voltando seu olhar para o rock em 1975, Ken Russell adaptou para o cinema o álbum conceitual “Tommy”, de 1969, do grupo britânico The Who. A obra do Who foi uma das primeiras ‘óperas rock’ da história.
“Tommy”, o álbum, segue a estrutura de uma ópera nos moldes clássicos com direito a abertura instrumental, temas melódicos recorrentes, personagens, diálogos e monólogos cantados. É, sem dúvida, um dos melhores trabalhos da banda comandada pelo guitarrista e compositor Pete Townshend.
Para a adaptação cinematográfica, algumas modificações foram feitas: no álbum, a história se passa após a I Guerra Mundial, no filme, a ambientação é pós II Guerra. Originalmente, o pai de Tommy mata o amante de sua mulher, no filme ocorre o inverso. Foram compostas novas canções para o filme e algumas das originais tiveram versos alterados.
Um messias cego, surdo e mudo
O resumo da ópera filmada é o seguinte: Tommy Walker é filho de um militar britânico da Segunda Guerra Mundial, considerado morto em batalha. Acontece que seu pai volta, seis anos após o fim da guerra, e é assassinado pelo amante de sua mãe, Frank. Tommy assiste a tudo e é obrigado por sua mãe e seu padrasto a acreditar que ele não viu, não ouviu e não falará sobre o assunto. Dessa forma, Tommy se torna literalmente cego, surdo e mudo aos seis anos de idade.
Trancado em seu próprio mundo, Tommy segue uma jornada na qual suas sensações físicas são interpretadas como música. Anos mais tarde, ao esbarrar numa máquina de Pinball, começa a jogar freneticamente e se torna invencível nesse jogo, angariando uma legião de fãs. Tommy frequentemente se posta diante de um espelho e parece conseguir enxergar seu reflexo. Em certo dia, o espelho é quebrado por sua mãe e o rapaz fica repentinamente curado.
Com o intuito de compartilhar sua redenção, das trevas à luz, com seus seguidores, Tommy assume a figura de um messias e estabelece uma doutrina com culto, no “Campo de Férias de Tommy”, onde os fiéis devem passar pela experiência de jogar Pinball sem ver, ouvir ou falar. Porém, as coisas não saem como o planejado e, graças às interferências nefastas de seus parentes, os jovens seguidores se voltam contra Tommy.
Ao final, sozinho a subir uma montanha, Tommy parece ter alcançado um novo patamar de libertação.
Estrelado pelo vocalista do Who, Roger Daltrey, no papel principal, conta também com Ann Margret, a mãe, Oliver Reed, o padrasto, Elton John, o jogador de Pinball desafiado por Tommy, Tina Turner, a Rainha do Ácido, Eric Clapton, o pastor de um culto a Marilyn Monroe, Jack Nicholson, o médico, Keith Moon, o tio tarado de Tommy, além de Pete Townshend e John Entwistle, que aparecem como músicos da banda de Tommy.
Apesar do clima datado e francamente kitsch do filme, o resultado é muito bom e acabou por ganhar a aura de cult e é um dos melhores exemplos de diálogo entre cinema e música.
“Tommy” pode ser assistido em streaming pela HBO Max.