Há exatos 25 anos eu vivia um 12 de outubro inesquecível. No quintal da casa da minha avó, uma bicicleta cor-de-rosa com cestinha branca e adesivos prateados representava o desafio do dia: conseguir me equilibrar pela primeira vez sem o auxílio das rodinhas laterais. Tomavam conta de mim a ansiedade, a insegurança e a vontade de dizer: “acho que posso usar a bicicleta com rodinhas até o ano que vem”. Mas era tarde para voltar atrás. Subi auxiliada pela minha mãe e, com o restante da família como plateia, iniciei o trajeto. Eu poderia dizer que, a partir desse momento, uma sensação de liberdade invadiu meu peito e, enquanto seguia altiva com o vento batendo em minha face, descobri que era capaz de superar quaisquer dificuldades enquanto ouvia o clássico “We Are The Champions” ao fundo. O desfecho, porém, foram três tombos, joelhos e cotovelos ralados e um choro histérico embalado por drama e soluços.
É a vida. Nua e crua desde nossos primeiros passos. Passei um período relutando em tentar outra vez. A bicicleta ficou esquecida enquanto eu disfarçava minha covardia dizendo a mim mesma que jogar Atari e pular Pogobol era mais divertido. Nas semanas seguintes, entretanto, comecei a romper as amarras. Poucos meses depois era comum, para quem passava, me ver descendo a rampa que dava acesso à rua em alta velocidade, sem sequer me lembrar de que um dia aquela geringonça de fácil domínio habitara meus pesadelos ao lado da lenda do Fofão Assassino. Foi meu primeiro contato com a convicção de que nem tudo é fácil, mas que o difícil não está fora de alcance. Foi a primeira vez que entendi, de maneira lúdica, que as coisas não acontecem na hora em que queremos, mas, quando acontecem, têm o poder de transformar frustração em alma lavada.
Isso foi há um quarto de século. Hoje, adulta, ainda me apavoro diante de “bicicletas sem rodinha” que a todo momento me desafiam a erguer a cabeça e enfrentá-las. Às vezes me vejo tentada a tirar dos ombros o peso das responsabilidades e ir correndo para o quarto abraçar o travesseiro. A gente resgata do passado o conforto que existia na infância, a possibilidade de curar com Merthiolate e colo de mãe as quedas e feridas. Mas é preciso abrir os olhos, encarar as perdas, vulnerabilidades e obstáculos. É necessário lavar o rosto, tirar a pantufa do Bob Esponja e pagar os boletos. Recordo-me com saudosismo do dia em que conseguir dominar a bicicleta cor-de-rosa era o problema do ano. Por outro lado, é prazeroso e reconfortante ver agora em mim o reflexo da criança que fui e das alegrias e percalços que deram o tom da trajetória até aqui.
Entre um tombo e outro de bicicleta, aprendi que a gente resolve desde pequena o que quer extrair da vida. Percebi que dá para escolher se ela é amarga como remédio para bronquite ou se tem gosto de jujuba, se é mágica como circo ou séria como provas de matemática. Entendi sobretudo que, quase sempre, é tudo isso junto. Eu me lembro das moedinhas de chocolate que recebia das mãos macias da minha madrinha e da paz que vinha junto com o afeto. Também me lembro da separação dos meus pais, do zero no teste de química, da sensação de impotência diante de situações maiores do que a garota que eu era. Tudo isso reside em mim. A criança que fui ainda se manifesta em minhas decisões e sentimentos. Se ela brinca ou tem medo de escuro, eu decido.