Guillermo Del Toro não dirige nenhuma das oito curtas que integram “Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro”, mas é impossível dissociar sua imagem rotunda e elegante das histórias de terror fantástico que levam a audiência por uma viagem metafísica, delirante e cheia de revelações ao universo de tipos exóticos, repulsivos e miseráveis que foram se tornando a marca registrada de uma carreira que não admite obviedades. Para não dizerem que Del Toro parece ele mesmo um fantasma diante de sua obra, o diretor abre cada um dos filmes com um resumo breve do que se vai assistir, e em todos os casos, o que se tem é a inconteste superação do que o mestre enuncia, frisando o nome de cada colega antes que jogar-nos numa noite de breu denso e profundo, que sol nenhum dissipa.
“Gabinete de Curiosidades” mostra situações aparentemente banais que não tardam a degringolar em pânico e caos, protagonizadas por monstros improváveis e vilões empenhados em atropelar toda noção de moral, outra das características mais notórias em seus trabalhos. Em quase quarenta anos de carreira, o mexicano escalou o olimpo dos grandes realizadores de Hollywood com garbo, sem menosprezar a concorrência, mas muito seguro de seu talento e do que queria dizer. Hoje, quando se fala em Del Toro, pensa-se incontinente em tramas plenas de uma maravilhosa hediondez, que tratam de reduzir a pó a hipocrisia e a burrice de quem alardeia aos quatro ventos sua justiça, suas boas intenções, seu bom-mocismo, todas essas meras camadas de um verniz xexelento, que mal esconde a perversão das emoções calculadas. Eis a feitiçaria poderosa de belezas como esta coleção, fórmula de cujo impacto a Netflix parece vir se convencendo.
Não dá para entender por que “Gabinete de Curiosidades” passou tanto tempo sem a merecida divulgação. “Lote 36”, o enredo inicial da antologia, é o saboroso aperitivo que desperta a vontade de acompanhar os outros sete episódios, que só melhoram. Aqui, da mesma forma que acontece em “A Incrível História de Henry Sugar e Outros 3 Contos” (2024), compilação de meia dúzia de relatos curtos que o britânico Roald Dahl (1916-1990) produziu ao longo de meio século de carreira, outra obra-prima do gênero patrocinada pela Netflix, Guillermo Navarro fala de um velho que, tal como o avarento da peça do francês Molière (1622-1673), passa pela vida acumulando quinquilharias que podem ter algum valor além do afetivo, segredo que o diretor guarda até o instante em o mistério enfim amadurece e revela-se por si só. Quando ele morre, tudo vai parar num depósito, administrado de forma um tanto suspeita pelo ex-veterano de guerra interpretado por Demetrius Grosse. Nick Appleton, o novo proprietário dos bens do inquilino morto, obedece a seu faro e chega a uma mesa mediúnica que por seu turno conduz a um livro místico que pode valer até trezentos mil dólares se alguém tiver o condão de o tirar do lugar onde se encontra desde os anos 1940. Munido da famosa carranca e da silhueta esquelética de sempre, Tim Blake Nelson brilha na pele desse sujeito mesquinho, abrindo espaço para “Ratos de Cemitério”, de Vincenzo Natali, sem dúvida o melhor da seleção, com o justo equilíbrio entre tecnologia e a boa e a velha esquisitice toriana. Só assistindo para entender.
Filme: O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro
Criação: Guillermo Del Toro
Ano: 2022
Gêneros: Terror/Fantasia/Drama/Mistério
Nota: 10