Os tempos são de medo e desejo pelo fim do mundo. A festa do Oscar neste ano que o diga. O maior premiado foi o filme “Oppenheimer”, que traz o velho truque de mostrar a complexidade de figuras lamentáveis — no caso, o criador da bomba atômica. Já o prêmio de melhor filme internacional coube a “Zona de Interesse”, que conta a história da vida normalizada ao redor de um campo de concentração nazista na Segunda Guerra Mundial. Em suma, o horror ou o sentimento de fim de linha dá o tom das coisas.
Mas nenhum dos dois filmes premiados tem a pegada de “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, para tratar do mundo contemporâneo. O diretor alemão carrega na bagagem uma obra que, nos últimos 50 anos, pensou os movimentos da cultura. Seus filmes captaram imagens do planeta em transformação constante e impulsionado pela indústria cultural global e avassaladora. Wenders se tornou, por exemplo, referência para quem viveu os anos 1980, tanto quanto Jean Luc Godard representou para a década de 1960.
Os personagens, os cenários e as imagens de “Paris, Texas” e “Asas do Desejo” viraram sinônimos de uma época. Uma sofisticação de imagens e sons para tratar de coisas simples da vida. O andarilho Travis, em pleno deserto dos Estados Unidos, ou os anjos Cassiel e Damiel observando as ruas de Berlim prestes a sofrer uma das maiores transformações de sua História (a queda do muro em 1989). Wenders provou que não precisava de muitos elementos para fazer um grande filme.
“Dias Perfeitos” nasceu de uma demanda singela de produtores japoneses para que Wim Wenders fizesse um documentário mostrando os banheiros públicos da metrópole Tóquio. Um tema banal que o diretor transformou numa impressionante e delicada história de ficção. E mais importante: o filme é, no fundo, uma narrativa contra os discursos de ódio da atualidade, xenofóbicos, usados por uma política que, cinicamente, diz ser herdeira da “civilização ocidental” e defensora de valores tradicionais.
Wenders narra o dia a dia do personagem Hirayama (interpretado por Koji Yakusho), responsável pela manutenção de banheiros públicos. Ao invés de encarar o trabalho como algo menor e degradante, ele dá dignidade à limpeza de privadas, dá atenção a todas as pessoas que o abordam. Sua vida segue o ritmo da repetição, mas com um olhar para além da realidade — o que faz o espectador lembrar do motorista de ônibus que escreve poemas no filme “Paterson” (2017), de Jim Jarmusch.
O tempo livre, Hirayama o utiliza para andar de bicicleta pela cidade e fazer sempre as mesmas coisas. A ida ao trabalho é animada pela coleção de fitas cassete com canções como “Perfect day”, de Lou Reed. A trilha sonora traz uma seleção de músicas antológicas do rock americano e inglês (Velvet Underground, Patti Smith, Kinks, Van Morrison). As fitas fazem parte intrínseca da construção do personagem, meio perdido no tempo, mas que tem uma história a ser revelada.
A solidão, e não o individualismo, domina o cotidiano do limpador de banheiros. Ele almoça nos parques da cidade e tira fotos com uma câmera analógica cujo filme precisa ser revelado. Há uma espera pelo resultado da imagem. Em outras palavras, pode-se viver sozinho e não pensar na busca máxima do egoísmo. A vida não se resume à procura de melhor ganho para si mesmo. E a solidão faz parte da existência de um artista — algo bem desenvolvido no filme “Ficção Americana”, de Cord Jefferson.
O despojamento de Hirayama tem parentesco com o “personagem” Papa Francisco que é a figura central do documentário “Um Homem de Palavra” (2018), filmado por Wenders. Estão nesses filmes a visão crítica, sem violência, do diretor. Se existe um futuro, ele não está em distopias ou no prazer com cenas violentas, explosões de fúria. Qualquer futuro, indica Wenders, está num minimalismo e na simplicidade de narrar histórias — por mais que sua visão cinematográfica seja exuberante.
Junto com “Dias Perfeitos”, Wenders fez o documentário “Anselm”, que foca a obra do artista plástico alemão Anselm Kiefer. A grandiosidade de telas e instalações ganha um registro à altura de sua importância. Dois artistas que souberam captar o trauma alemão do século 20 e processar a experiência dolorosa nas artes. E no final da vida, ambos não desistem do mundo e sua crise. São como narradores de Walter Benjamin, que não deixam o excesso de informação desorientar suas percepções de mundo.