Uma mulher me deixou bolado.
— Quantos anos você tem?
— 58.
— 58? Não diga. Que coincidência. Temos a mesma idade.
— Você parece mais jovem, doutor.
— Não adianta tentar me agradar. Vai pagar do mesmo jeito.
A mulher sorriu, iluminando o consultório.
— Será que a gente ainda vai viver pelo menos mais uns quinze anos? — perguntou.
Tomei um susto. Achava quinze anos pouco tempo. Uma mixaria. Três copas do mundo.
— Se Deus quiser, não — respondi.
— Como assim “Se Deus quiser, não”?
— Dizem por aí que é ele quem cancela os CPF, sem critérios muito claros para nós, pobres mortais.
— Com todo respeito, doutor, não se discute os desígnios do Pai. Deus é grande.
— Olha só: o seu tumor é pequeno e é benigno. Não vai precisar de cirurgia. Fique tranquila. Por hora, vamos apenas acompanhar com exames periódicos, uma vez por ano.
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
Comecei a preencher a papelada.
— Qual é a sua profissão?
— Sou musicista. Musicista e compositora. Compositora gospel.
— Compositora gospel? Que curioso.
— Sim. Componho cantos de louvor para a comunidade cristã. Várias canções minhas foram gravadas por cantores famosos e ainda fazem muito sucesso. O senhor gosta de música gospel?
— Não é a minha praia.
— Qual é a sua praia?
— Huummm… Música popular brasileira. Um pouco de blues. Um pouco de jazz. Um pouco de samba. E muito rock and roll, é claro.
— Qual é a sua religião, doutor?
— Não tenho nenhuma em particular.
— Mas, o senhor tem fé, certo?
— Se eu disser a verdade, você promete que vai retornar com os exames que eu vou lhe pedir?
A mulher deu de ombros e sorriu novamente. Antes de tudo, era uma criatura gentil, bem-humorada. Catou os formulários e vazou. Aproveitei para cair fora também.
Mesmo sendo um profissional da área, chegava uma fase da vida em que a gente comemorava resultado de exame médico como se fizesse um gol de placa. Tipo soco no ar, dancinha espalhafatosa ou a camisa jogada para a galera. Que fase. Recebi com indisfarçável alívio a minha bateria de exames anais, ou melhor, a minha bateria de exames anuais. A despeito do fura-bolo do urologista — aquele colega frio e insensível — estava tudo bem comigo.
Cheguei em casa mais cedo que o usual. Estava aliviado como uma gazela que escapasse da perseguição de guepardos na savana. Tirei os calçados. Tirei o jaleco, a roupa e atirei para a torcida imaginária no sofá da sala. Para comemorar o checape bem-sucedido, decidi tomar um porre. Liguei o aparelho de som. Comecei ouvindo “Jump”, da banda Van Halen, em altíssimos decibéis.
Trajado apenas de cueca, pulava e dançava pela cozinha, como se fora acometido por espasmos descoordenados de uma crise epiléptica. Dublava música inglesa com fluência patética. Não demorou muito, um dos vizinhos esmurrou a porta da frente, quase colocando-a abaixo. Gritou abaixe esse som pelo amor de Deus que a minha esposa está grávida e sofrendo uma enxaqueca terrível. Nada mais justo. Eu estava ébrio, eufórico, mas, continuava razoável.
Cacau estava deitada no assoalho, estendida com as patinhas para trás, o queixo colado no piso, a observar-me com os olhos apaixonados de quem sentia fome. Alimentei-a com ração. Experimentei um grãozinho. Coisas de bêbado. Minha companheira chegou mais tarde, encontrando-me em avançado estado de decomposição mental. Eu cantava sucessos dos anos 1980, utilizando o cabo da vassoura como microfone. Em matéria de sobriedade, estávamos a centenas de coqueirinhos de distância um do outro. Abraçou-me, carinhosa. Disse parabéns pelos seus resultados vou tomar uma ducha e já volto para comemorarmos.
Depois da tempestade sempre vinha a bonança, o que não deixava de ser uma lástima. Quando ela retornou, eu já tinha apagado. Estava dormindo nos braços da torcida, aquela plateia cativa, invisível e silenciosa, sentada no sofá. Na manhã seguinte, durante o café, ela comentou que eu parecia feliz e sereno. Tipo um homem apaixonado por música e por futebol que dispunha, sei lá, na pior das hipóteses, de mais umas três copas do mundo pela frente. Isso não foi ela quem disse. Fui eu que pensei.