A obra-prima que Jodie Foster considera sua melhor atuação no cinema está no Prime Video Divulgação / BBC FIlm

A obra-prima que Jodie Foster considera sua melhor atuação no cinema está no Prime Video

Não se pode esperar muito da vida quando se nasce num país chamado República Islâmica da Mauritânia. Encravada em pleno deserto do Saara, com o oceano Atlântico a oeste, a ex-colônia francesa é mais um dos inúmeros feudos de fundamentalismo religioso patrocinados por organizações terroristas como a Al Qaeda de Osama Bin Laden (1957-2011). Por uma dessas tristes coincidências do destino, o saudita, morto numa emboscada no Paquistão durante uma força-tarefa que reuniu a elite militar americana ao cabo de dez longos anos, definiu o rumo lamentável que a vida de Mohamedou Ould Salahi tomou entre novembro de 2001 e outubro de 2016.

Depois do contato fugaz entre Salahi e Bin Laden, o personagem-título de “O Mauritano” aceita que um dos homens do líder da Al Qaeda passe a noite em seu sofá e o resto é História. Uma história que Kevin Macdonald conta com sofisticação estética e rigor intelectual em seu filme, ancorado por, além do mauritano, uma mulher abnegada, algo excêntrica, disposta a levar até o fim sua intenção de perseverar na busca pela verdade.

Da experiência de Salahi como prisioneiro sem crime no campo de detenção americano numa distante baía do litoral sul de Cuba, nasceu “O Diário de Guantánamo” (2015). De onde os roteiristas Michael Bronner, Rory Haines e Sohrab Noshirvani tiraram um enredo multifatorial, apontando ora para um lado, ora para a direção oposta. Exatamente como manda a natureza do assunto em tela.

A impressão mais vívida do relato de Macdonald é que Salahi, capturado durante o casamento típico de alguém próximo, é o bode expiatório perfeito. O diretor tem a habilidade necessária para ir e vir no tempo, e já na abertura, pouco depois da detenção arbitrária do mauritano, a narrativa avança para 2005. Momento em que Salahi, já há quatro anos sob custódia do governo americano em Guantánamo, é finalmente acusado pelo crime de terrorismo contra o povo e as instituições dos Estados Unidos.

A responsável pela proeza é Nancy Hollander, criminalista americana que milita em defesa das liberdades individuais e da dignidade dos encarcerados na penitenciária cubana. Macdonald usa de sutileza para insinuar o que todos já sabemos: a questão dos acusados de crimes contra a soberania americana mantidos em Guantánamo é um jogo de cartas marcadas. Nos tribunais federais decide-se que a maioria dessas pessoas, encurraladas não raro em circunstâncias nebulosas, foram detidas sem razão e permanecem numa cela isolada por anos a fio, sem direito à visita de parentes ou assistência jurídica, mas nunca mais saem de lá.

Hollander compra a briga de Salahi, cuja identidade fora reduzida a um número, 760, e o que se tem a partir de então é um embate legal que se estende por década e meia. Espaço o bastante para que os dois nutram uma relação ambivalente, cheia de altos e baixos, na qual sobram motivos para desconfiança de parte a parte — mais dele para com ela, é verdade.

Malgrado o grande elenco de coadjuvantes talentosos, o filme poderia muito bem ficar apenas entre Tahar Rahim e Jodie Foster. A química nada romântica nunca degringola para o melodramático, tanto menos para o farsesco, embora a situação de Salahi se complique a cada cena. A fotografia de Alwin H. Kuchler conserva sempre dois tons abaixo do natural e do confortável à visão, quando não estoura propositalmente a luz, como na bela sequência em que o preso e sua defensora esgrimem um diálogo cheio das farpas do ressentimento, tornadas banais naquela convivência duplamente infeliz.

O milagre de Nancy Hollander se deu a 17 de outubro de 2016, quando Mohamedou Ould Salahi conseguiu, enfim, a liberdade. Restam quase oitocentos presos em Guantánamo à espera de igual sorte.


Filme: O Mauritano
Direção: Kevin Macdonald 
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Suspense 
Nota: 9/10