Em 1939, Ary Evangelista Barroso lançou, durante o espetáculo “Joujoux et balangandans”, o samba “Aquarela do Brasil”, um samba diferente dos até então propagados, vindos dos morros, pois se caracterizava pelo uso preponderante de instrumentos de cordas e sopros. Este samba de exaltação, ufanista à natureza, ao povo e às nossas raízes culturais, só ganhou notoriedade nacional após a gravação de Francisco Alves, com uma orquestração elaborada e inovadora de Radamés Gnatalli.
Numa noite de chuvas torrenciais em 28 de fevereiro de 1928, impedido de sair de casa devido ao temporal, Ary compôs letra e música de “Aquarela do Brasil” em alguns minutos; e, como de costume, fugindo das tragédias da vida, exaltou extraordinariamente as belezas do nosso país, segundo seu neto Márcio Barroso.
Em 27 de janeiro de 1940, ocorreu a “Noite da Música Popular”, na qual sambas e marchinhas concorreram para o carnaval daquele ano e foram avaliados por um júri de cinco membros, incluindo dois cronistas do rádio, os compositores Pixinguinha e Luiz Peixoto, e tendo como presidente o Maestro Heitor Villa-Lobos, que desclassificou a aclamada música de Ary Barroso,
“Aquarela do Brasil”, por não se enquadrar no panorama da música carnavalesca. Esse fato gerou uma animosidade entre os dois, resolvida apenas 15 anos depois, quando ambos receberam a Comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul em 1955.
O marco divisor, que dá título a este ensaio, ocorreu quando “Aquarela do Brasil” tornou-se trilha sonora do filme de animação “Alô, Amigos”, lançado pelos estúdios Disney em 1942.
É interessante citar que, ao ouvir pela primeira vez esse samba de exaltação, Disney apaixonou-se e conheceu Ary no Rio de Janeiro, no último dia de sua visita ao Brasil, visita que também inspirou a criação do personagem Zé Carioca pelos estúdios Disney.
Vale ressaltar que “Aquarela do Brasil” alcançou 322 gravações, de Mário Reis a João Gilberto, incluindo também Bing Crosby, Frank Sinatra, Dionne Warwick, Elis Regina, Cauby Peixoto, entre outros. Dentre todas, a mais admirada por este ensaísta é a contida no álbum fonográfico “BRAZIL”, no qual João Gilberto canta com Gil e Caetano.
Desde então, o samba se transformou, antes baseado na percussão, e ganhou uma roupagem simbiótica com a música europeia, enriquecendo-o significativamente, e Ary foi o precursor desse enriquecimento, sob o arranjo criado por Gnatalli.
Sem dúvida, pode-se afirmar que Ary foi o primeiro multimídia nacional, atuando como pianista, compositor prolífico, cantor ocasional, locutor de futebol, rádio ator, comentarista, humorista, radialista (comandando o mais importante programa de calouros da época) e advogado por formação acadêmica.
Nascido em Ubá, Minas Gerais, Ary ficou órfão muito jovem, aos 8 anos de idade, e foi criado pela avó e uma tia, professora de piano, que teve grande influência em sua formação musical. Aos doze anos, já tocava em sessões de cinema mudo, e aos 15, compôs sua primeira música.
Aos 17 anos, após receber uma herança, Ary mudou-se para o Rio de Janeiro para cursar Direito. Em 1921, ingressou na faculdade de Direito, onde foi colega de Lamartine Babo. Contudo, talvez pela sua inexperiência em assuntos administrativos, acabou perdendo toda a herança em luxos, o que o levou a abandonar o curso de Direito por quatro anos, período no qual trabalhou como pianista de cinema mudo, até alcançar o status de pianista da orquestra do maestro Sebastião Cirino.
Em 1926, Ary retornou à Faculdade de Direito, sem abandonar o piano, e em 1928, ao ser contratado por uma orquestra paulista, dedicou-se à composição.
Desde sua chegada ao Rio, Ary morou em várias pensões, conheceu Ivonne Belfort na pensão da rua André Cavalcanti e casou-se com ela, apesar da oposição dos sogros, que o viam como um boêmio incorrigível. Desse casamento, teve dois filhos.
Ary, além de ser advogado e muito inteligente, trouxe para a música brasileira melodias excelentes e uma linguagem refinada, distante do coloquial, o que foi reconhecido por Tom Jobim, que disse: “Ary deu nova cor à música popular brasileira”. Desde então, todos os compositores da MPB passaram a se inspirar em sua obra.
Definido por sua filha Mariúsa como irrequieto, falastrão, arrebatado, boêmio, apaixonado, irônico, engraçado, cáustico, amoroso, de personalidade marcante, carismática e controversa, Ary dedicou grande parte de sua obra musical à Bahia, com suas características marcantes e ao Senhor do Bonfim, amor que surgiu em sua primeira viagem à Bahia em 1929. Nessa viagem, ele se encantou não só pelas belezas naturais, mas também pela cultura resultante da miscigenação. Segundo seu biógrafo, Sérgio Cabral, ninguém cantou a Bahia como Ary, nem mesmo Dorival Caymmi.
Ary dizia que não descobriu a Bahia, mas sim se descobriu na Bahia, e o que mais lhe impressionou foi a devoção ao Senhor do Bonfim, tanto dos baianos quanto dos visitantes.
Em sua primeira viagem aos Estados Unidos, Ary relatou em carta à esposa: “aqui sou um big hit, sou acreditado. Quando me apresentam como autor de ‘Aquarela do Brasil’, simplesmente ‘BRAZIL’ por cá, recebo muitos abraços e pedidos de autógrafos… Ainda não terminei meu contrato com a Republic Pictures e já visitei vários estúdios cinematográficos. Já se fala em contrato com a Fox, a Metro, e principalmente com Walt Disney. Acredito que entrei na porta da imortalidade. É questão de aproveitar esta chance”. Apesar das tentadoras ofertas e do grande prestígio — em 1944, recebeu o Prêmio de Mérito da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood pelo samba “Rio de Janeiro”, composto para o filme “Brazil” —, Ary não conseguiu firmar residência nos Estados Unidos. Nem mesmo quando Walt Disney, para espanto geral, ofereceu-lhe a direção musical de sua empresa. Ary recusou, justificando em inglês macarrônico: “Because don’t have Flamengo here”.
Ary foi, sem dúvida, um dos maiores torcedores do Flamengo de todos os tempos. Como locutor esportivo, expressava todo seu amor ao clube carioca, mesmo em transmissões de jogos de outros times. Quando qualquer adversário ameaçava o gol do Flamengo, Ary, sem pudor, dizia: “Ih, lá vem os inimigos. Não quero nem olhar”. E quando o confronto não envolvia o Flamengo, sempre que saía um gol, primeiro narrava e depois tocava uma gaita. Houve momentos em que Ary, além de vibrar com os gols do Flamengo, deixava a cabine de rádio para comemorar.
Em uma ocasião, Ary Barroso foi proibido de entrar no Estádio de São Januário, pois os dirigentes do Vasco da Gama não suportavam mais suas narrações tendenciosas e as críticas ásperas ao clube. Para contornar a censura, Ary encontrou uma casa cujo telhado oferecia uma visão completa do campo vascaíno e de lá narrou o jogo.
Ary Barroso faleceu em fevereiro de 1964, de cirrose hepática, decorrente de sua intensa vida boêmia, deixando um legado de mais de 300 composições.
Almir Chediak teve o cuidado de organizar um songbook de Ary Barroso, que, embora não contemple toda sua obra, oferece uma pequena amostra da obra desse que foi e ainda é um dos dez maiores compositores da história da MPB.