É isso mesmo. De acordo com a reportagem do jornalista Leandro Aguiar, publicada na “Agência Pública” no final do mês passado, alguns presídios de Minas Gerais não estão permitindo a entrada de literatura. A matéria começa com um episódio representativo da situação: uma mãe leva de presente para o filho um exemplar de “Os Velhos Marinheiros”, de Jorge Amado. Um agente penal veta a entrada da obra e explica que só pode entrar autoajuda e a Bíblia. Nada de literatura.
A proibição, é claro, não é oficial. Trata-se de uma regra não escrita da direção do presídio, que não veria “com bons olhos” a entrada de literatura na unidade prisional. Nesse sentido, um pesquisador entrevistado para a reportagem revelou que “entre a Polícia Penal, prevalece a ideia de que apenas livros religiosos podem ser aceitos”. De acordo com outra especialista ouvida, para os agentes, leituras não religiosas poderiam “comprometer a ordem e a segurança” nas colônias penais.
Seria de bom tom que a direção do presídio que proibiu “Os Velhos Marinheiros” elucidasse como a contenda entre o comandante Vasco Moscoso de Aragão e o fiscal aposentado, Chico Pacheco, poderia, de qualquer forma, comprometer a ordem e a segurança da unidade.
Juridicamente, o veto é uma aberração. A Lei de Execução Penal prevê como direito dos presos o exercício de atividades intelectuais (artigo 41, VI). Além disso, o artigo 3º da mesma lei elucida que: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Vale dizer, o condenado perde apenas a liberdade, mantendo todos os outros direitos. E aí estão abrangidos o direito ao lazer e o direito à cultura, consagrados nos artigos 6º e 215 da Constituição Federal (ambos podem se traduzir no acesso dos detentos à literatura). Ainda, embora não prevista em lei, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu, em diversas ocasiões, a remição da pena pela leitura de obras literárias.
A proibição, sem o menor respaldo legal, é mais um indicador de que o Supremo Tribunal Federal acertou ao classificar as condições degradantes do sistema carcerário brasileiro como “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI), no julgamento da ADPF 347/DF. Trata-se de um conceito criado pela Corte Constitucional colombiana e que expressa uma situação de violação generalizada de direitos fundamentais que afeta um número indeterminado de pessoas. É como se a cúpula do judiciário brasileiro estivesse apontando para os presídios e declarando “nós falhamos aqui”.
Para além da ótica jurídica, a proibição revela uma assustadora ignorância dos agentes de segurança pública quanto ao caráter transformador de uma obra literária. A literatura é o repositório das experiências acumuladas da humanidade. O detento que virar a noite lendo Machado de Assis, por exemplo, experimentará uma existência diferente da sua própria, durante algumas horas. Será, simultaneamente, um exercício de empatia, na medida em que aumentará a sua capacidade de compreender situações complexas de outros seres humanos — muitas vezes gerando um sentimento de identificação —, e um exercício de retenção dos meios de narrar a própria experiência. É aquela velha lição incontornável: quem quer escrever bem precisa ler bem.
E mais: em posse dos meios de narrar a própria experiência, o detento adquire a capacidade de torná-la analisável, pensável. Disso pode nascer — quem sabe? — uma reflexão clara e direta sobre o delito eventualmente cometido, sem que se recorra a subterfúgios. Nesse sentido, algum grau de cultura literária constitui um requisito prévio para um bom “exame de consciência”.
No entanto, não é toda obra literária que é indicada. Certos livros têm o potencial maior de despertar uma verdadeira reflexão, de provocar um processo que pode culminar, na melhor das hipóteses, em arrependimento e não no “comprometimento da ordem e da segurança”, como temem os policiais penais dos presídios investigados pela “Agência Pública”. “Crime e Castigo”, o clássico de Dostoiévski sobre culpa e arrependimento, escrito após o autor ter passado dez anos na Sibéria, é um desses livros.
A obra — a primeira de Dostoiévski a ser traduzida — conta a história do jovem Raskólnikov, um estudante pobre e brilhante, admirador de Napoleão, que se julga no direito de assassinar uma detestável agiota e roubar todo o seu dinheiro, a fim de financiar os seus estudos. Após o assassinato, o protagonista entra numa luta interna entre o altruísmo e o egoísmo. Ele confessa o crime a uma prostituta quase santa, Sónia Siemionovna Marmiéladova, que o orienta a se entregar às autoridades. O jovem homicida assim o faz, e é enviado para a Sibéria. Testemunhamos, então, o seu conturbado processo de depuração que culmina no verdadeiro arrependimento.
É um livro exemplar naquilo que se propõe, e sua presença em estabelecimentos prisionais deveria ser tão obrigatória quanto guardas armados e arame farpado. Não é à toa que muitas prisões ao redor do mundo incentivam os detentos a lerem o clássico. Não ironicamente, o livro foi banido da Prisão de Guantánamo, o que demonstra que o arrependimento não é um assunto interessante quando o fim visado pelo Estado é a tortura, e não a ressocialização.
Ao banirem a entrada de obras literárias, os presídios de Minas Gerais vão na contramão do mundo civilizado, retirando dos reclusos a possibilidade de vivenciarem a experiência catártica do arrependimento proporcionada por clássicos como “Crime e Castigo”.
A literatura universal tem a capacidade misteriosa e fascinante de servir de “ponto de apoio” durante o inferno do cárcere, é como um escudo que protege as pessoas da degradação (nesse sentido, inclusive, não parece absurdo enxergar na proibição, uma violação do direito à saúde, consagrado no artigo 6º da Constituição). A história traz muitos testemunhos disso.
Veja-se, por exemplo, o caso de Tatiana Gnedich, uma tradutora russa que foi condenada em 1944 a dez anos de prisão num “gulag” (a acusação era de “traição”). Ela tinha na memória os 16.000 versos de “Don Juan”, no original. Assim, ao longo de sua pena, dedicou-se a traduzir para o russo a grande obra de Byron — a qual, repita-se, ela só tinha na cabeça. A sua tradução foi publicada em 1956, logo se tornando a edição clássica em russo. Harold Bloom fala da “literatura como modo de vida” — e parece que não há exemplo melhor que a biografia de Tatiana Gnedich.
A literatura revela a rica complexidade da vida humana. Vivenciar, com todo o coração, uma grande obra literária é uma experiência quase mística que deve, pelo menos, estar à disposição de todo e qualquer ser humano, encarcerado ou não. Privar os detentos, sobretudo eles, dessa experiência constitui uma atitude desumana que em nada contribui para o processo de ressocialização.