Sovietistão: o livro que desvenda a Ásia Central

Sovietistão: o livro que desvenda a Ásia Central

A literatura de viagem (ou “odepórica”) é um gênero consagrado no Ocidente, encontrando os mais diversos cultores ao longo dos séculos, do geógrafo grego Pausânias (“Descrição da Grécia”, 160-176 AC) às lendárias viagens de Marco Polo registradas por Rusticiano de Pisa; de Goethe (“Viagem à Itália”, 1816) a Steinbeck (“Viagens com Charley”, 1962); podendo apresentar tanto uma atmosfera espiritual — como no relato do “Hajj” do polímata inglês Richard Burton — quanto altamente profana (veja-se o famoso “On the road” de Jack Kerouac, uma viagem real ainda que ficcionalizada). É dentro dessa tradição que se insere o livro da antropóloga norueguesa Erika Fatland, “Sovietistão” (2014), publicado no Brasil em 2021 pela Editora Âyiné.

Para a maioria de nós, a Ásia Central é um lugar obscuro e misterioso — e eu quase disse “esquecido” — do planeta Terra. Um emaranhado de ruínas da utopia comunista que colapsou em 1991, cuja existência foi relembrada pelo público ocidental apenas durante a exibição do filme “Borat” em 2006, que retrata o Cazaquistão como uma ditadura atrasada repleta de pobreza, misoginia e antissemitismo.

A obra de Fatland — cujo nome completo é: “Sovietistão. Uma viagem pelo Turcomenistão, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão e Uzbequistão” — veio com a finalidade de trazer mais compreensão para esse verdadeiro “aftermath” do experimento soviético. Equipada apenas com o seu russo fluente, Fatland percorre os cinco “istãos” (o sufixo vem do persa e significa “lugar” ou “terra”) que um dia compuseram a antiga Rota da Seda, relatando suas experiências e impressões com uma desenvoltura de romancista, não obstante a presença maciça no texto de dados históricos, geográficos e políticos sobre a região.

Sovietistão
 Sovietistão, de Erika Fatland (Editora Âyiné, 520 páginas)

Desde o princípio — do Turcomenistão ao Uzbequistão —, o seu olhar sobre as instituições, a cultura, a política e a religião é explicitamente ocidental. Não é uma obra que se propõe a analisar friamente a região, isto é, não é um gélido estudo etnográfico, mas antes um relato de viagem carregado de calor humano. Desse modo, ficamos sabendo das opiniões e julgamentos da autora. Quando algo machuca seus olhos escandinavos, acostumados ao bem-estar social, à taxação das grandes fortunas e às democracias liberais, nós imediatamente tomamos conhecimento (por exemplo, o Turcomenistão é descrito como “Ditadoristão”). Esse lirismo torna a leitura da obra muito menos árida, ao ponto de, por vezes, termos a impressão de que estamos lendo o relato das aventuras de um amigo próximo.

Não obstante, a leitura da obra fornece uma visão apurada sobre a vida nas ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central.

No início de sua jornada, em Ashgabat, a capital do Turcomenistão, Fatland detalha toda a atmosfera distópica — e despótica — da impressionante cidade de mármore, onde, por lei, apenas carros brancos podem transitar pelas ruas. Com os semblantes crispados de medo, os moradores descrevem as maravilhas da jovem nação sem jamais esquecerem de mencionar que tudo é “graças ao nosso bom presidente” — à época do livro, o país era governado com mão de ferro pelo dentista Gurbanguly Berdimuhammedow, que buscava garantir o apoio popular com a gratuidade da água, do gás e da energia elétrica, um expediente típico de ditadores populistas. Apesar de toda a riqueza ostensiva da capital turcomena, os restaurantes e hotéis de luxo só são frequentados pela elite política e pelos executivos da empresa de engenharia francesa responsável pela construção dos mirabolantes obeliscos de mármore branco.

No Cazaquistão — a “terra natal de Borat” —, a antropóloga descreve o maior país da Ásia Central como “um oásis de sushis e caixas eletrônicos”, um lugar quase democrático se comparado ao vizinho Turcomenistão. Fatland faz um balanço sobre o desastre da administração soviética, retratando como a política de “fazendas coletivas” imposta pelo Kremlin dizimou a milenar cultura de cavaleiros nômade então existente, ao mesmo tempo em que causou a morte de populações inteiras pela fome.

Passando pelo montanhoso Tajiquistão, Duchambe — considerada por muitos como a capital mais bela de toda a Ásia Central — é descrita como “a capital dos Mercedes-Benz”. As construções em estilo neoclássico da era soviética convivem agora com arranha-céus de aço e vidro. As ruas são largas e equipadas com ciclovias, tudo fora cuidadosamente projetado pensando-se num utópico futuro socialista. A república montanhosa é presidida desde os anos noventa por Emomali Rahmon, um intelectual público que parece ter nascido com o “dom” de vencer eleições (4 consecutivas, até o momento).

O Quirguistão é descrito pela antropóloga escandinava como um lugar em que há uma atmosfera de liberdade bem maior quando comparado aos seus vizinhos da Ásia Central. Os cidadãos criticam o governo sem temor de perseguição — o medo da polícia secreta parece ter ficado para trás. A capital, Bishkek, conservou a influência russa da época da administração soviética. Embora muitos russos tenham voltado para o seu país de origem após o colapso do império em 1991, a todo momento ouve-se russo pelas ruas de Bishkek e os cidadãos da capital vestem roupas ocidentais.

Finalmente, Fatland alcança o Uzbequistão. Ao contrário do respiro democrático encontrado no vizinho Quirguistão, os agentes da SBN (uma espécie de “KGB uzbeque”) são mais presentes que as plantações de algodão — o país é o sexto maior produtor mundial. Islam Karimov, o presidente à época da viagem de Fatland, teve êxito em converter a ex-república soviética em uma das piores ditaduras do planeta, onde direitos humanos são violados com naturalidade. De acordo com a antropóloga: “Para reduzir o crescimento populacional, por exemplo, certas regiões recebem ordens de esterilizar determinado número de mulheres por mês. As mulheres aparecem no hospital para fazer uma cesariana e têm alta sem saber que não poderão mais ter filhos”. Outro dado apontado pela autora que chama a atenção é que “prisioneiros são torturados e violentados rotineiramente como forma de obter confissões. Um método de tortura bastante usado é cobrir o rosto do preso com uma máscara de gás cujas válvulas de ar são bloqueadas”.

Apesar disso, o Uzbequistão consegue habilmente evitar retaliações da comunidade internacional por meio de acordos, como o que firmou com os Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro, o qual permitiu o estabelecimento de bases militares americanas em solo uzbeque.

Assim, no seu relato repleto lirismo e dados estatísticos, Fatland torna inteligível a realidade caótica dos cinco “istãos” e de suas populações que tentam sobreviver em meio aos escombros do experimento soviético. A riqueza petrolífera, os desertos inóspitos, a nostalgia comunista, o culto à personalidade, os costumes tradicionais, o Islã, a influência econômica da China… Todos esses fatores, ricamente explorados no livro, tornam a Ásia Central um barril de pólvora. Nessa toada, ao final da obra, a antropóloga confessa que quando recebe uma pergunta sobre o futuro dos países da Ásia Central, parafraseia Peter Hopkirk, o autor de “The Great Game”: “Não sou corajosa nem estúpida o suficiente para tentar respondê-la. Agora, qualquer coisa pode acontecer ali”.