Histórias de ilegalidades cometidas no ambiente virtual foram se tornando carne de vaca desde que “Sem Vestígios” foi lançado, há década e meia, e, diferentemente do vai no título do filme de Gregory Hoblit, nem o hacker mais astucioso consegue invadir sistemas, desviar milhões de contas bancárias, abalar reputações ou vender terrenos na lua sem ser identificado minutos depois.
Feita essa ponderação e abusando-se da licença poética e da boa vontade de compreender o que queria o diretor, é possível desfrutar de algum prazer diante da história de um psicopata que, não satisfeito em matar, transmite seus rituais macabros para todo o planeta, alcançando a proeza de jamais de ser pego e, a cereja do bolo, arrebanhar dezenas de milhões de espectadores, quiçá lunáticos como ele, ao arrepio do que orientam as autoridades.
Sem dúvida, essa é a força do roteiro de Mark Brinker, Allison Burnett e Robert Fyvolent, sugerir, com muito jeito, que é muito tênue a linha que separa um delinquente de quem diz apenas observar a barbárie ao longe, mas à distância de um clique, obviedade para a qual, ainda hoje, nem todos atinam.
Com alguma assiduidade, somos desafiados a encontrar motivos para ratificar nossa crença no existir, passando por cima de todo o desalento que embrutece e paralisa; de toda a melancolia, que na dose imprópria, deixa nebuloso o céu da reflexão e avança ao pântano da dúvida imanente e ubíqua, acerca de qualquer um e em qualquer parte; de tudo quanto tenta nos demover da busca por dias menos sombrios e gente mais esperançosa, o ideal mais singelo e mais intricado a que se pode aspirar.
Num só movimento, viver torna-se uma sucessão de luzes e sombras que se atraem e se repelem e se equivalem, subidas e descidas bruscas e repentinas como num brinquedo infernal, entradas e saídas de labirintos claustrofóbicos que se estreitam ainda mais conforme tomamos pé de nossas humanas limitações, agudizando o sentimento de que no espírito do homem cabem mesmo todos os sonhos do mundo, mas nele encrustam-se igualmente muitas das côdeas que enxovalham os corações para muito além da vã filosofia deste plano tão rasteiro.
Há algum tempo, a Divisão de Crimes Cibernéticos do FBI e a polícia de Portland tenta colocar Owen Reilly a ferros, mas levam um baile do facínora, que ganha hordas de seguidores a cada anúncio de um novo espetáculo em seu circo dos horrores. O sadismo de Reilly começa a importunar a equipe da investigadora Jennifer Marsh, acostumada a toda sorte de golpistas e monstros, e Diane Lane não desperdiça nenhuma chance de extravasar o choque de sua personagem frente a recorrentes e intermináveis sessões de tortura, sufocando seu mal-estar no empenho quase obsessivo de estancar a sangria. Para tanto, dispõe da retaguarda de
Griffin Dowd, o adjunto vivido por Colin Hanks em mais um papel secundário, muito longe do sucesso do pai, Tom, mas num trabalho digno de elogios. O diretor tenta inspirar no público a abjeção pelo antagonista, esforçando-se por repetir a boa marca de “As Duas Faces de um Crime” (1996) ao apelar para o sadismo que se esconde em cada um, mas sequências que se derramam em excessos arriscados como a onipresença de Lane — de fato bem melhor em melodramas a exemplo de “Sob o Sol da Toscana” (2003), de Audrey Wells (1960-2018), ou “Paris Pode Esperar” (2016), dirigido por Eleanor Coppola — comprometem o resultado final, justamente por, Lane queira ou não, este ter se tornado seu DNA artístico.
A propósito, passados dez anos da estreia de “Sem Vestígios”, que está na Netflix, Debra Granik levou à tela um trabalho quase homônimo (e que em nada se parece ao apresentado por Hoblit). Essas coincidências do cinema — e sobretudo das traduções pelas quais as distribuidoras optam — ainda hão de render seu próprio filme.
Filme: Sem Vestígios
Direção: Gregory Hoblit
Ano: 2008
Gêneros: Terror/Mistério
Nota: 7/10