O Mágico: o romance biográfico de Colm Tóibín sobre a vida de Thomas Mann

O Mágico: o romance biográfico de Colm Tóibín sobre a vida de Thomas Mann

“O Mágico” (Companhia das Letras, 543 páginas, tradução de Christian Schwartz e Liliana Negrello), do escritor irlandês Colm Tóibín, é um romance. Mas é um romance ou uma biografia romanceada? Romance sobre pessoas reais resiste como literatura ou se torna biografia disfarçada? “O Mágico” é literatura?

É preciso enfatizar que, ao transformar o escritor alemão Thomas Mann em personagem, Colm Tóibín não falseia sua vida. Não a azeda nem a edulcora. As informações básicas são apresentadas de modo escrupuloso — e com uso delicado e fidedigno de seus diários.

De alguma maneira, ao romancear a vida de Thomas Mann, de sua mãe, a brasileira Julia da Silva-Bruhns (fala-se de “marzipã feito de açúcar brasileiro” e de romã), de seu irmão, o escritor Heinrich, de sua mulher, Katia (judia; a família foi perseguida pelo nazismo dos alemães), e de seus filhos, como Klaus e Erika, Colm Tóibín escreve uma biografia, por assim dizer, com alma. Um romance-biografia de vivos. Não de mortos.

O Mágico
O Mágico, de Colm Tóibín,(Companhia das Letras, 543 páginas, tradução de Christian Schwartz e Liliana Negrello)

O leitor percebe a história de vidas reais acontecendo à sua frente e, por isso, certamente se interessará ainda mais por entendê-las. Colm Tóibín usa sua imaginação poderosa para recriar a história da família Mann e seu tempo — dando-nos um painel amplo dos séculos 19 e, sobretudo, 20.

Digamos que o fictício leitor João Paulo Sinésio Carneiro-Gomes de Lima compre “O Mágico”, leve-o para sua casa e comece a lê-lo, de maneira displicente, como os leitores não especialistas costumam fazer. Noutras palavras, em busca de uma boa história. O que concluirá ao ler a prosa precisa, límpida e ágil de Colm Tóibín?

Se nada souber da história de Thomas Mann, ou mesmo se souber pouco, terá um belo romance pela frente. Porque a questão central é esta: o livro de Colm Tóibín resiste como literatura. A vida do autor de “A Montanha Mágica” e de “Doutor Fausto”, recriada pela imaginação, rendeu literatura de qualidade.

Se resiste como literatura, dada a capacidade de criação de Colm Tóibín, o livro resiste como biografia? O mais interessante é exatamente isto: o livro de Colm Tóibín resiste como literatura e como biografia.

A vida da família Mann, desde o pai e a mãe de Thomas Mann, está muito bem contada. A história da bissexualidade do escritor está narrada com precisão, o que pode ser conferida nas várias biografias publicadas (confira uma lista mínima abaixo). E, sim, Katia Mann, a inteligente e operosa mulher do escritor, sabia de seu homoerotismo e não parecia muito preocupada com isto. Mesmo mais velho, ele sentia atração por homens mais jovens. O casal teve seis filhos, quase todos intelectualmente dotados.

A dedicação extrema de Thomas Mann à literatura — era infatigável; escrever era uma espécie de sacerdócio (e também lia muito) —, sua paixão pela música, a relação complicada com Heinrich Mann, o combate ao nazismo, o exílio nos Estados Unidos e a relação distanciada com os filhos — um deles, Klaus Mann (autor do romance “Mefisto”, rendeu um filme), se suicidou, aos 42 anos — são descritos com fidelidade pelo romance. Com a graça e a leveza habituais de Colm Tóibín.

Fica-se com a impressão de que, de alguma maneira, o criador irlandês emula — ou mimetiza — a prosa de Thomas Mann. Com a diferença de que, se Thomas Mann era mais sutil e enviesado, Colm Tóibín é mais explícito nas narrativas, sobretudo da vida privada (sem grosseria nenhuma).

“O Mágico” ilumina a vida e a obra de Thomas Mann. É, por assim dizer, um convite à leitura da obra e ao conhecimento mais detido da vida do escritor de “Os Buddenbrook”, o romance que garantiu o Nobel de Literatura ao “proseador” germânico.

Colm Tóibín | Foto: Companhia das Letras

Em suma, “O Mágico” é um belo romance e não decepcionará os leitores, especialmente aqueles que não são especialistas na vida e na obra de Thomas Mann. Os especialistas certamente dirão: nada de novo no front. Talvez tenham de concluir que a novidade é a invenção literária do autor de “Carlota em Weimar” (sobre Goethe, que o escritor amava) como personagem… consistente. O homem, que parecia insípido, tinha uma vida (interior) rica (daí a literatura de alta qualidade, com personagens complexos e matizados). É provável que a leitura dos diários tenha possibilitado a Colm Tóibín vasculhar a vida íntima do escritor, um indivíduo relativamente reservado.

(Espera-se que, sendo irlandês, Colm Tóibín escreva, em seguida, a vida de James Joyce, autor de “Ulysses”. Esclarecendo que a prosa de Colm Tóibín pouco ou nada tem a ver com a do autor de “Finnegans Wake”. Ele talvez seja mais filho de Henry James, que também “biografou” romanceando, em “O Mestre”, e, aqui e ali, de Thomas Mann.)

Tratemos, a seguir, unicamente dos processos referentes à criação de “Morte em Veneza” e “A Montanha Mágica”.

Morte em Veneza

Thomas Mann apreciava a música do alemão Richard Wagner e do tcheco-austríaco Gustav Mahler. Num concerto de Mahler, o escritor observou o compositor e regente com atenção. “Thomas podia ver uma carga erótica nele, uma força que era mais física do que espiritual”, anota Colm Tóibín.

Numa visita a Veneza, depois de observar bem, Thomas Mann decidiu que escreveria uma história ambientada na cidade. “Ocorreu-lhe que seria um grande consolo se pudesse dar vida a Mahler em uma história.” Era o prenúncio de “Morte em Veneza”, novela publicada em 1912.

Thomas Mann
Thomas Mann, escritor alemão e filho de uma brasileira

No Hotel des Bains, no Lido, Thomas Mann — era um hábito — começou a observar o garoto polonês Władysław Moes (1900-1986). Władysław Moes “era loiro, com cachos que desciam quase até os ombros”. Sua beleza deixou Thomas Mann obcecado. Assim como o alemão transformou o jovem polonês num personagem, com o nome de Tadzio, 109 anos depois, em 2021, Colm Tóibín transformou o autor de “Morte em Veneza” em personagem, porém sem mudar seu nome.

Katia Mann, que era esperta e atenta, percebeu o interesse de Thomas Mann por Władysław Moes. Ela participava dos jogos do marido, à distância, só observando. (No livro “Na Rede dos Magos — Uma Outra História da Família Mann”, de Marianne Krüll, na página 254, há um registro do escritor em seu diário: “Abraço em K. Minha gratidão pela bondade presente em seu procedimento quanto a minha problemática sexual é profunda e calorosa”. Na página 131, Colm Tóibín registra: “Assim como Thomas não faria nada para colocar sua felicidade doméstica em risco, Katia reconheceria a natureza de seus desejos sem qualquer reclamação”.)

“Thomas reparou na brancura da pele do menino, no azul de seus olhos, em seu jeito de permanecer imóvel. (…) Não era apenas sua beleza que afetava Thomas agora, era sua maneira de se conter, de ficar quieto sem ser mal-humorado, de se sentar com a família mantendo-a à distância”, escreve Colm Tóibín.

O personagem central da novela é Gustav Aschenbach (a rigor, talvez as “personagens” sejam a beleza e a sensualidade), e não o menino Tadzio. Ainda que inspirado em Mahler, o protagonista não é um compositor, e sim um escritor (no filme de Visconti é o contrário). “Seu personagem, fosse Mahler, Heinrich ou ele mesmo, viera a Veneza para ser confrontado pela beleza e animado pelo desejo”, pontua Colm Tóibín.

“E a história teria de sugerir que o desejo era sexual, mas também, claro, distante e impossível. O olhar do homem mais velho seria ainda mais feroz por não haver nenhuma chance de algo mais acontecer. A mudança na vida do protagonista seria ainda maior pelo fato de que aquele encontro ser passageiro e não levar a lugar nenhum. Jamais poderia ser tornado público ou aceitável, domesticado pelo mundo. Atravessaria os portões de uma alma que um dia se acreditara inexpugnável”, escreve o prosador irlandês.

Como havia rumores sobre cólera em Veneza, Thomas Mann incorporou o problema à sua história. “Ele misturaria o desejo do homem mais velho a uma sensação de doença, de decadência.” Aschenbach, como decide não escapar da cidade, morre devido à doença.

A Montanha Mágica

No início da década de 1910, com uma “mancha tuberculosa num dos pulmões”, Katia foi internada em Davos, na Suíça, para um tratamento rigoroso. Do sanatório, Katia escrevia cartas para Thomas Mann, dando detalhes dos acontecimentos. O escritor, que era um homem glacial, “sentia falta” de sua mulher, a quem, ao seu modo, amava.

Katia cobrava uma visita e Thomas Mann decidiu vê-la. De cara, “conheceu a espanhola que andava gritando ‘tous les deux’, em referência a seus dois filhos, que sofriam de tuberculose”. Um homem, viciado em chocolate, não parava de falar em se matar. Thomas Mann e Katia “conversaram sem parar” nos primeiros dias da visita. Muitas pessoas morriam no sanatório. O escritor “ficou surpreso com o tom casual dela quando falou dos mortos”.

A Montanha Mágica
A Montanha Mágica, de Thomas Mann (Companhia das Letras, 856 páginas, tradução de Herbert Caro)

Um médico sugeriu que Thomas Mann fosse examinado. “Imagine só! Nunca conheci uma pessoa perfeitamente saudável antes”, disse o Simão Bacamarte de Davos. O escritor aceitou fazer exames e, após ver os resultados, o médico quis interná-lo. Porém, saudável, o autor de “Confissões do Impostor Felix Krull” não aceitou a recomendação. E, de fato, não estava tuberculoso. O raio X o impressionou, por isso descreveu-o com presteza no romance.

Como tinha o hábito de examinar as cousas do mundo com extrema atenção, sempre imaginando que poderia resultar num conto ou num romance, Thomas começou a “observar os internos”. “Saber sobre eles começou a interessá-lo quase ao ponto da obsessão.”

Como o tempo parecia “parado” no sanatório, com as coisas se repetindo, Thomas Mann disse a Kátia “que sempre soubera que o tempo passava devagar num lugar desconhecido”. “Mas, mais do que tudo, não sabia se seu plano de dramatizar a própria passagem do tempo, ou a desaceleração do tempo, como se o tempo em si fosse um personagem, teria algum sentido para os leitores do livro.”

Ao voltar para casa — que, sem Katia, havia se tornado bagunçada —, Thomas Mann decidiu planejar a escritura de “A Montanha Mágica”, que contaria a história do jovem Hans Castorp. O livro é um romance de formação. O personagem é “educado” — “forma-se” — no sanatório. Os contatos com os internos, as contradições da vida, as dores (o sofrimento), a “proximidade” da morte, os debates entre Naphta e Settembrini contribuem para o amadurecimento do garoto.

Katia saiu do sanatório, mas, ao escrever o livro, é como se Thomas Mann fosse o interno, vasculhando tudo o que acontecia por lá. Baseou-se, em parte, nas histórias contadas por sua mulher, inclusive nas suas cartas, mas o restante é produto de sua imaginação poderosa e de sua extremosa capacidade de pesquisar.

A primeira leitora de “A Montanha Mágica” foi Katia. “Vou ter muito o que dizer. Amo que você tenha me transformado num homem no livro, e num homem tão doce. Mas isso é coisa pequena. Mais importante é o fato de que você mudou tudo para nós. Sua seriedade agora veio à tona. O livro é cheio de seriedade. Será lido por todos os alemães que se importam com livros, e será lido pelo mundo todo. (…) É um livro que encontrou seu momento. (…) O jeito como o tempo é retratado, e como o livro vai se tornando lento! E quando tocam ‘Valentin’s Prayer’ no gramafone e a figura que sou eu volta à sala, retorna dos mortos!” “A Montanha Mágica” foi um romance bem-sucedido desde o início e Thomas Mann gostaria de ter ganhado o Nobel de Literatura por ele, e não com “Os Buddenbrook”.

Colm Tóibín trata também da elaboração de “Doutor Fausto”, um dos romances mais importantes de Thomas Mann e uma releitura (ou diálogo) hábil e perceptiva do “Fausto” de Goethe. O livro acabou provocando intriga com o compositor Arnold Schoenberg, em parte provocada pela pianista e compositora Alma Mahler, amiga de ambos. A obra é uma crítica corrosiva ao nazismo, aos que aderiram, aos que, para se manter no pódio ou para crescer, ficaram calados ou apoiaram o regime totalitário de Adolf Hitler. E também é sobre a revolução da música erudita… moderna.

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.