Gerry Fenn já teve uma carreira. Agora, ele tem de se conformar em receber uns trocados para deslocar-se até os cafundós da América profunda à cata de histórias quase inverossímeis de tão ridículas, até que o destino parece querer sorrir-lhe de novo. Roteirista de sucesso, com colaborações em longas a exemplo de “As Panteras” (2019), dirigido por Elizabeth Banks, e na versão de Bill Condon para “A Bela e a Fera” (2017), a apropriação do conto de Gabrielle-Suzanne Barbot (1695-1755) — já enxertado de modernices pouco tempo depois de sair do prelo, ainda na primeira metade do século 17, por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, em 1756 —, Evan Spiliotopoulos arrisca-se na direção com “Rogai por Nós”, bem-vinda afronta aos falsos profetas que não se cansam de eivar de vigarices manifestações religiosas de todas as origens e de todas as dimensões.
No caso em tela, a uma garota surda-muda de Banfield, Massachusetts, nordeste dos Estados Unidos, começam a ser atribuídas curas milagrosas e, claro, não demora para que uma romaria de crentes sinceros e picaretas talentosos aportem na cidadezinha, que experimenta tempos de estranha ambivalência, colhendo os frutos lucrativos de tanta exposição ao passo que também se vê forçada a encarar questões que remontam a quase dois séculos — e que já explicariam muito do desnecessário caos que se instala à volta daquela gente crédula, ansiosa por um salvador que as liberte de sua tacanheza.
Maneiras autoritárias de se relacionar com os outros, fundadas na satisfação de suas próprias vontades em detrimento das carências e das emoções alheias, são um aspecto do temperamento de boa parte dos indivíduos desde que o mundo é mundo. Quanto mais dura se nos apresenta a vida, mais se pensa ser correto exigir que ela devolva tudo aquilo que se imagina ser um direito inalienável, cada vez mais amplo, mais sem controle e que se se crê válido para qualquer um, em especial para uns poucos felizardos que nascem sob dadas circunstâncias.
Religião e fé são variações de um mesmo tema, que alcança ainda o misticismo e, refinando-se um pouco mais a perspectiva, as relações entre Deus e o homem. Se a natureza divina se faz presente em rigorosamente todos os seres, animados ou inanimados, racionais ou não, como pensou Spinoza, o Criador seria também capaz de apresentar-se sob uma forma curiosamente ambígua, juntando num único ser a constituição sem falhas que o difere de qualquer outra entidade, e a matéria, perecível e dúbia, que conhecemos tão bem.
Fenn chega a Banfield para investigar uma possível mutilação de gado — sem nem saber ao certo se isso de fato configura uma ilegalidade —, mas esse aspirante frustrado de Gay Talese consegue matéria-prima para seu próprio “O Reino e o Poder”. Já nos primeiros lances, Spiliotopoulos faz questão de exaltar o componente místico de seu filme, exatamente como faz James Herbert (1943-2013) em “Shrine” (“santuário”, em tradução literal), publicado em 1983. Baseado no romance de Herbert, o texto do diretor-roteirista é a melhor coisa de “Rogai por Nós”, que cresce na boca diabólica do protagonista, com Jeffrey Dean Morgan no ponto, mormente ao combater Alice, a falsa profetisa de Cricket Brown.
Filme: Rogai por Nós
Direção: Evan Spiliotopoulos
Ano: 2021
Gênero: Terror/Mistério
Nota: 8/10