No ano de 10191 d.C., a decadência do duque Shaddam IV, vivido por José Ferrer (1912-1992) em “Duna” (1984), de David Lynch, se compara a seu quase homônimo, Saddam Hussein (1937-2006), o ditador saudita caído em desgraça pela intervenção dos Estados Unidos de George Walker Bush (2001-2009), com a agravante de não se ter muito mais o que salvar do que sobra da Terra.
A série de ficção científica nascida da pena delirante e saborosa de Frank Herbert (1920-1986), publicada entre 1965 e 1985, logo tornou-se um cult também no cinema, primeiro pelas mãos de Lynch, e na releitura do franco-canadense Denis Villeneuve — um dos diretores mais refinados da novíssima história do cinema —, o espectador é outra vez despejado outra vez em Arrakis, planeta de atmosfera vermelha que lembra Marte, e cuja única riqueza são as especiarias, diligentemente guardadas por vermes titânicos que viram feras ao menor barulho.
Villeneuve, por óbvio, cerca-se de muita, muita tecnologia a fim de reacender no público o interesse por uma história aparentemente datada, mas que nas entrelinhas guarda incômodas coincidências com o mundo de há quatro décadas. A população de Arrakis é subjugada por bárbaros que extraem todo o quinhão que podem desses recursos, sem que nunca herói nenhum jamais se levante contra eles. Até que surge Paul Atreides, filho de Shaddam IV, que se atribui o papel de messias de Arrakis e se insurge contra os déspotas que usurpam seu povo, os fremen.
É cada vez mais impressionante a evolução artística de Timothée Chalamet. Assim como se dá em 1984, o roteiro, agora a cargo de Villeneuve, Eric Roth e Jon Spaihts, confere merecida liberdade criativa a Chalamet, que aproveita toda as oportunidades para convencer quem assiste de que “Duna” ainda vale a pena. Paul, um garoto criado a leite de pera, é obrigado a assumir as funções do pai, o duque Leto, de Oscar Isaac, um governante ainda respeitado, mas há algum tempo baratinado diante do avanço da tribo inimiga, de onde surgirá uma possibilidade romântica para o novo líder, encarnada por Chani, de Zendaya.
Villeneuve refresca a memória de quem assiste, malgrado seja econômico nas sequências de monstros que vem de baixo do chão e afloram à superfície, investindo na agradável figura de seu personagem central. A maturidade compulsória de Paul decerto é um dos pontos altos da mais recente versão das tramas urdidas por Herbert, e Chalamet deita e rola em papéis dessa natureza, se preparando para a transição que se vai testemunhar no segundo ato — e em sua própria carreira. Villeneuve escapa da armadilha da comparação com o trabalho de Lynch, de fato muito mais afeito às esquisitices do escritor, pontuando as ofensivas dos invasores a bordo de seus tópteros, às quais Paul nem sempre responde da maneira mais adequadamente belicosa. A última cena dá a ilusão de que nosso herói deixará de ser tão cerebral e tome gosto pela espada, o que talvez comece a acontecer em “Duna 2”, também de Villeneuve, com pré-estreia agendada para este 29 de fevereiro.
Filme: Duna
Direção: Denis Villeneuve
Ano: 2021
Gêneros: Ficção científica/Aventura
Nota: 9/10