Não se apoquentem. O homem que morreu por dentro passa bem. Um tanto amargo, em certa medida. Afinal, viver não é brinquedo. Esse sujeito de cerne mumificado não cogitava, contudo, se matar. Ele tinha morrido fazia um longo e arrastado tempo, já se acostumara à descomunal insignificância dos próprios sentimentos que ele rotulava como bobagens. Vivia de forma reservada, desprovido de amigos e de achegados. Lidava com colegas de trabalho, parceiros comerciais, prestadores de serviço e era só. O homem, depois que morreu por dentro, abdicou de se lastimar, de choramingar porque já não sentia melindres pelo marasmo em que se metera. Na verdade, nutria um orgulho velado pela aridez interior. Não enxergava nisso sinal de decrepitude. Ao contrário, sentia-se uma criatura ímpar, superior à média do restante da humanidade. Não criava um pet. Não regava uma planta. Não ouvia música. O vivido homem que morreu por dentro, apesar dos alvos e bem conservados dentes, raramente se deixava pegar sorrindo. Pelo que se tinha notícia, não havia uma única foto clicada nas últimas décadas na qual ele aparecesse sorridente. Morava sozinho num geminado onde o vento gemia ao fazer a curva. Mesmo sem gana interior presumível, cuidava da saúde corporal de forma pragmática, ao se consultar rotineiramente com incontáveis profissionais da saúde. Não fumava. Não bebia. Não metia os pés pelas mãos. Olvidara o que fosse o amor. Cortou o açúcar e as relações familiares; os pulsos, jamais. Não usava drogas, senão, a própria bile servida ao velho estilo caubói: sem gelo. Sobrava-lhe frieza para tornar o definhamento emocional palatável. Projetava viver cem anos, sem ter que se aborrecer ao conviver com pessoas as quais tinha riscado do caderninho. Metódico ao extremo, poupara dinheiro para remunerar com justeza uma gama notável de cuidadoras, caso delas necessitasse nos vindouros estertores da existência. Favor não pediria, nem vivo, para quem quer que fosse. O sujeito em questão se julgava uma pessoa de sorte por poder tocar a vida na inércia. Desenvolvera um controle emocional impressionante que blindava o sistema límbico contra emoções, deixando-o incólume aos clamorosos levantes sociais e aos atritos humanos mais variados, desde uma reles briga de vizinhos até os ataques genocidas contra civis inocentes. O homem que morreu por dentro não se compadecia de ninguém ao descer a rua da amargura para comprar pão ou para sacar dinheiro, envolto numa inviolável carapaça de calmaria que nada mais era do que a própria incapacidade de se apiedar. Fazia tempo que esse indivíduo com retinas fatigadas se livrara das amarras que atavam os homens comuns aos cais do desassossego. Boiava num mar morto, desapegado dos dilemas existenciais e dos remédios para dormir. Dormia bem o desgraçado. Já não dançava. Já não cantava no chuveiro. Já não desperdiçava tempo idolatrando seres humanos com talentos incomuns. Tinha um emprego estável no governo central, onde consolidara a reputação de funcionário ilibado, competente, produtivo e intragável. Havia algo de misterioso naquele sujeito que não se decifrava nem sob uma lupa. Algo que fazia do isolamento uma virtude, da falta de empatia um mero deslize de hombridade, do desencanto uma dádiva. Estava convicto que Deus lhe reservava algo muito especial depois que o coração deixasse de bater, depois que os rins parassem de filtrar, depois que os pulmões se esquecessem como se respirava, depois que o cérebro desaprendesse de pensar para derreter e vazar falido entre as gretas e os ossículos do crânio. Vislumbrava um paraíso dotado de luz plena e de vazio infinito. Um espaço impecável destinado aos poucos escolhidos. A eternidade perfeita desapegada de plantas, de bichos e de pessoas.
O homem que morreu por dentro
Eberth Vêncio
É escritor e médico.