Livro revela que Vladimir Putin não hesita em matar Foto / Asatur Yesayants

Livro revela que Vladimir Putin não hesita em matar

Filho político de Joseph Stálin, o presidente russo Vladmir Putin comanda um regime corrupto e assassino. Fala-se em privataria no Brasil, mas privataria mesmo ocorreu na Rússia. Os oligarcas que assumiram o controle das estatais eram homens do sistema que, de pobres ou de classe média — a nova classe, a nomenklatura, de que falava o iugoslavo Milovan Djilas —, se tornaram bilionários. Um deles era o dono do Chelsea, um dos melhores times de futebol da Inglaterra. Outro, Boris Berezovsky, tentou comandar o Corinthians e, mais tarde, morreu; há dúvidas se teria se matado, dado mau passo nos negócios, ou se teria sido assassinado pela FSB (antigo KGB), que mantém ativo seu esquadrão globalizado de assassinos. No país de Aleksandr Púchkin e Liev Tolstói, nos tempos de Stálin, matava-se até quem escrevia contos, como Isaac Bábel, e quem escrevia poemas, como Óssip Mandelstam. O stalinismo criou instrumentos para filtrar e fisgar quaisquer tipos de oposição. Sabe-se que Putin não é dado a leituras e, por certo, não sabe distinguir Turguêniev de Tchekhov. Mas, como Stálin, trata seus adversários, ou aqueles que avalia como adversários, como se fossem inimigos. Ao tratá-los assim, vale qualquer coisa para combatê-los. Pode mandar matá-los, como fez com o ex-espião do KGB Alexan­der Litvinenko (seu crime: ter se aliado a Boris Berezovsky) e, possivelmente, a jornalista Anna Politkovskaya (seu crime: denunciar os horrores russos na Chechênia). Curiosa ou sintomaticamente, a repórter foi assassinada no dia do aniversário de Putin. Pode mandar prendê-los, e quando soltos, se são liberados, se tornam párias, porque não conseguem empregos decentes. Pode tomar seus bens. Pode fazer qualquer coisa a qualquer um, pois não há liberdade individual na terra do escritor Mikhail Liérmontov. Todos estão à mercê do novo czar vermelho-lama. Leia mais uma vez: todos.

Alerta Vermelho
Alerta Vermelho, de Bill Browder (Intrínseca, 408 páginas)

Pois um homem, Bill Browder, neto do principal dirigente do Partido Comunista Americano, Earl Browder (1891-1973), decidiu enfrentar Putin. Por sorte, de fora da Rússia. Porque, se estivesse lá, seria encarcerado, condenado e, em seguida, assassinado em alguma masmorra que nada fica a dever aos tempos do Gulag de Stálin. A história é impressionante e está muito bem narrada no livro “Alerta Vermelho — Como Me Tornei o Inimigo Número Um de Putin” (Intrínseca, 399 páginas, tradução de Marcelo Levy), de Bill Browder.

Filho de uma família de intelectuais (o pai nasceu na Rússia), formado pela prestigiosa Universidade Stanford, Bill Browder decidiu, contrariando a família socialista, se tornar capitalista. Depois de uma breve passagem pelo mercado, decidiu mudar-se para a Rússia, na década de 1990, para aproveitar a onda de privatizações. Conseguiu convencer Edmond Safra, dono do Republic National Bank e marido de Lily Safra — que era dona do Ponto Frio —, e se tornaram sócios. O banqueiro liberou 25 milhões de dólares para o jovem financista investir nas empresas do país de Putin.

Vencendo um oligarca

De cara, Bill Browder descobriu que 22 oligarcas controlavam 39% da economia da Rússia. Para apoiar a reeleição de Boris Yeltsin, em 1996, os oligarcas conseguiram ampliar o controle da economia. Mesmo assim, o criador do fundo de investimentos Hermitage percebeu que era possível ganhar dinheiro no país. Investiu, por exemplo, na Sidanco, uma grande companhia de petróleo da Sibéria (reservas de 6 bilhões de barris de petróleo), e ganhou muito dinheiro, multiplicando o que havia aplicado. A companhia era controlada pelo bilionário russo Vladimir Potanin. Quando a British Petroleum (BP) comprou 10% da participação de Potanin, em 1997, “por um valor 600% maior que o pago” pelo Hermitage, o lucro de Bill Browder e Edmond Safra foram lá para o alto. “Foi um gol de placa”, sublinha o investidor.

Ao perceber que Bill Browder, um estrangeiro, estava ganhando muito dinheiro na Rússia, Potanin tentou prejudicá-lo. “Quando se trata de dinheiro, um russo sacrifica seu próprio sucesso com prazer — até mesmo com alegria — só para ferrar seu vizinho”, afirma o CEO do Hermitage. Não “era russo” deixar um americano (naturalizado inglês) ganhar dinheiro na Rússia. “O que era russo era arruinar o negócio do outro.”

Potanin armou um esquema para desvalorizar as ações do Hermitage, mas, contando com o apoio de Edmond Safra — que inclusive lhe arranjou vários seguranças —, Bill Browder decidiu enfrentá-lo, inclusive denunciando-o no exterior. Ao chamar a atenção do mercado, de vários investidores, com reportagens na imprensa americana e europeia, o gestor do fundo conseguiu conter Potanin.

Putin
Vladimir Putin usou ações de Bill Browder contra alguns oligarcas e depois expulsou o investidor do país e passou a atacá-lo e até a ameaçá-lo, inclusive de morte

A vitória sobre Potanin consagrou Bill Browder como o investidor estrangeiro que sabia manejar negócios na Rússia. Seu fundo “foi considerado o de melhor desempenho no mundo em 1997, com valorização de 235% no ano e 718% desde sua criação. Os recursos sob nossa gestão haviam saltado dos 25 milhões de dólares originais para mais de 1 bilhão. O ‘New York Times’, a ‘Business Week’, o ‘Financial Times’ e a ‘Time’ publicaram matérias com meu perfil, me apresentando como o prodígio do mundo das finanças contemporâneas”. Bill Browder tinha apenas 33 anos e era cortejado pelos homens mais poderosos das finanças internacionais.

Mas, em seguida, notadamente em 1999, com a crise da Rússia, o fundo de Bill Browder perdeu dinheiro. “O Hermitage havia perdido 90% do seu valor desde o calote russo e agora os oligarcas estavam no processo de roubar os 10% restantes.” O roubo era generalizado, mas a Gazprom (“que atuava no segmento de petróleo e gás”), a maior empresa do país, era a mais saqueada pelos oligarcas. Eles roubaram o campo Tarko Saley, que “era maior que os das reservas da companhia petroleira americana Occidental Petroleum, cujo valor de mercado era de 9 bilhões de dólares”. O CEO do fundo diz que ficou “pasmo ao saber que uma empresa de 9 bilhões de dólares havia sido roubada da Gazprom”.

Entretanto, ao examinar os dados da Gazprom, com o apoio de especialistas, como o russo Vadim, Bill Browder descobriu que “mais de 90% das reservas da” Gazprom “não haviam sido roubadas… e ninguém sabia disso”. O que fazer? Investir na empresa. O Hermitage investiu 20% de seus recursos na companhia. Ao mesmo tempo, Bill Browder passou um amplo dossiê sobre a roubalheira para a imprensa internacional. “Wall Street Journal” e “Financial Times” deram ampla cobertura ao assunto. O primeiro contou que “os campos de gás roubados tinham reservas suficientes para ‘abastecer a Europa inteira por cinco anos’”.

Ante as denúncias, o presidente Vladimir Putin demitiu o CEO da Gazprom, Rem Vyakhirev. As ações da empresa subiram 134%. E continuaram subindo. “Em 2005, uma ação da Gazprom valia cem vezes mais do que o preço pago pelo Hermitage quando comprou seus primeiros lotes. Cem vezes mais, e não 100%. Nossa pequena campanha tinha livrado o país de um de seus oligarcas mais nojentos. Foi, sem dúvida, a melhor aplicação que fiz na minha vida”, comemora Bill Browder.

Sem perceber que estava obtendo vitorias com certa facilidade, Bill Browder continuou no ataque. Ele denunciou executivos da UES, a companhia nacional de energia elétrica, e o Sherbank, o banco nacional de poupança. O governo de Putin aprovou e mudou a legislação. Por que Putin, que não tolera interferência interna nos negócios da Rússia, para o bem ou para o mal, não impediu as ações de um investidor estrangeiro? Porque, ao reduzir o poder de alguns oligarcas, Bill Browder contribuía para fortalecer o governo de Putin. Eram amigos indiretos.

Expulso da Rússia

Em 2003, o fortalecido Putin mandou prender Mikhail Khodorkovsky, CEO da Yukus. O homem mais rico da Rússia e seu sócio, Platon Lebedev, foram condenados a nove anos de prisão. Os crimes não importavam tanto, mas o principal era, apesar de não ser crime, o fato de terem dado dinheiro à oposição. Bill Browder diz que, a partir de então, as regras mudaram de vez: a porcentagem de Putin nos negócios subiu. Calcula-se que ele exige de 30% a 50% (os corruptos brasileiros não chegam a tanto).

Agora, senhor absoluto da política e da economia, tendo se tornado um simulacro de Stálin, Putin não precisava mais de aliados como Bill Browder. Então, em maio de 2015, o investidor foi expulso da Rússia.

Agindo rápido, Bill Browder e seus auxiliares conseguiram “vender bilhões de dólares em ações de companhias russas sem” que o governo de Putin percebesse. O Hermitage conseguiu retirar “todo o seu dinheiro da Rússia”.

Mas, como Bill Browder deixou os russos com água na boca, Putin decidiu organizar uma expedição punitiva. Comandados pelo tenente-coronel Artem Kuznetsov, policiais invadiram o escritório do Hermitage em Moscou e, em seguida, reviraram o escritório da Kameya, um cliente russo do fundo. O governo de Putin garantia que havia sonegação de impostos.

Vladimir Putin
Vladimir Putin organizou uma quadrilha para saquear a economia da Rússia e quem discorda dele é preso, condenado e, até, assassinado | Foto: Frederic Legrand

Bill Browder contratou os serviços do advogado tributarista Sergei Magnitsky. Depois de examinar a documentação, ele concluiu que não havia nada de errado. Na verdade, Putin estava atrás dos ativos do Hermitage, sem saber que já estavam fora da Rússia.

A agência fiscal na qual a Kameya havia entregado suas declarações informou que a empresa não devia nada de impostos. Pelo contrário, “pagou 140 mil dólares a mais do que deveria”.

Ao se defender, a equipe de Bill Browder descobriu o que ninguém queria mostrar, e nenhum jornalista havia percebido: funcionários graduados do Ministério do Interior haviam roubado 230 milhões de dólares de impostos pagos ao Estado russo pelo fundo Hermitage. O fundo pagava os impostos, mas o dinheiro não chegava ao governo — era apropriado por uma quadrilha de pessoas poderosas. Todas visceralmente ligadas a Putin.

Para sua segurança, era melhor ficar calado. Mas Bill Browder, com o apoio de Sergei Magnitsky, conseguiu desconstruir a farsa e provou que agentes do governo eram corruptos. Eles haviam roubado o dinheiro do contribuinte.

Provada a corrupção, Bill Browder passou os dados da investigação para o “New York Times” e para o “Vedomosti”, “veículo” de comunicação “independente mais proeminente da Rússia”. A história do roubo repercutiu tanto no país de Putin quanto no exterior.

O governo de Putin, no lugar de pôr os corruptos na cadeia, intensificou a perseguição a Bill Browder e aos seus aliados russos, como Sergei Magnitsky, Vladimir Pastukhov, Ivan Cherkasov e Eduard. Todos foram alertados que, se ficassem na Rússia seriam presos e, até mortos. Pastukhov, Cherkasov e Eduard fugiram para a Inglaterra e sobreviveram.

Sergei Magnitsky não quis escapar e acabou preso. Agentes de Putin disseram para o advogado denunciar Bill Browder e seus aliados e ele respondeu: “Vou denunciar os agentes públicos que cometeram os crimes” (os que roubaram 230 milhões de dólares dos impostos).

Na prisão, sob condições muito difíceis e sem ser alimentado dignamente, Sergei Magnitsky adoeceu. Diagnosticado com pancreatite, cálculo biliar e coleciste, precisava passar por uma cirurgia. Mas o governo de Putin não autorizava o atendimento médico. “Sergei teve de conviver com cálculos biliares por quatro meses sem nenhum analgésico.” Policiais, dirigentes da FSB, procurador e juízes não deixavam que médicos o atendessem. Mas, como o advogado não aceitava mentir, para salvar-se, as torturas continuavam.

Com Sergei Magnitsky incomunicável na prisão, Bill Browden fez um filme, com o título de “Hermitage expõe fraude da polícia russa”, e postou-o no YouTube. Foi visto por milhares de pessoas. No vídeo, denunciava a fraude dos 230 milhões de dólares e a prisão e tortura do advogado russo.
Na prisão, apesar do isolamento, Sergei Magnitsky defendia-se por escrito, fazendo denúncias, claramente não acolhidas pelo governo Putin e pela Justiça, que, lá, é apêndice do Executivo. Os putinistas continuaram a política de intimidação. Um deles enviou uma mensagem para o celular de Vladimir, auxiliar do CEO do Hermitage: “A história nos ensinou que qualquer um pode ser morto”. É uma referência ao filme “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, com o ator Al Pacino, o Michael Corleone.

Em novo depoimento, Sergei Magnitsky não recuou: “Estou aqui porque descobri e expus o roubo de 5,4 bilhões de rublos de cofres públicos perpetrado por agentes dos órgãos de segurança”. Na prisão, os guardas surraram barbaramente o advogado, que não foi atendido por nenhum médico. Uma hora e dezoitos minutos depois do espancamento, quando apareceu um médico, possivelmente para confirmar o óbvio, Sergei Magnitsky estava morto, aos 37 anos. Seu crime: não aceitou mentir para salvar-se.
O governo inventou que Sergei Magnitsky havia morrido de “insuficiência cardíaca aguda”. Porém, no necrotério, a mãe do advogado, Natália, “puxou o lençol” e viu “ferimentos escuros nos nós dos dedos e lacerações profundas nos seus pulsos”. Eram marcas evidentes de tortura.

A morte de Sergei Magnitsky era um alerta para Bill Browder e seus aliados russos. Se não se calassem, um deles poderia ser o próximo, pois agentes russos, o chamado esquadrão de assassinos da FSB, atuam e circulam na maioria dos países da Europa com extrema facilidade. Racional era esquecer a história, afinal “histórias russas não têm final feliz”, mas o CEO do Hermitage, que admirava o advogado, decidiu continuar a batalha contra Putin. Na luta, contou com poucas pessoas — uma delas sua mulher, a russa Elena Molokova. Ele admite que teve medo, até muito medo — as pernas chegavam a tremer —, mas seguiu em frente.

Contra a barbárie

Na sua luta contra Putin e seus sequazes, Bill Browder conversou com senadores dos Estados Unidos e Kyle Parker, um assessor corajoso. E descobriu a Resolução 7.750, do governo americano, “impõe restrições de visto de entrada no país a agentes públicos estrangeiros envolvidos em corrupção”.
Kyle Parker conversou com o senador democrata Ben Cardin e solicitou que enviasse uma carta para a então secretária de Estado, Hillary Clinton, “exortando-a invocar a Resolução 7.750”.

A carta do senador Cardin, além de entregue a Hillary Clinton, foi divulgada no site da Comissão Helsinque dos Estados Unidos. Foram postadas as fotos dos corruptos Pavel Karpov e Artem Kuznetsov, a carta para a secretária de Estado e a lista com os nomes dos 60 agentes públicos envolvidos na morte de Sergei e na fraude fiscal. “Cardin pleiteava que os direitos de todos os 60 de viajar para os Estados Unidos fossem permanentemente revogados.”

Bill Browder:  mostrou que Vladimir Putin organizou uma quadrilha para saquear a economia da Rússia I Foto: Asatur Yesayants

As agências russas e os jornais ocidentais repercutiram a notícia. Falava-se na Lista Cardin. O governo russo ficou profundamente irritado. Mas o governo de Barack Obama não queria conflito com Putin e fingiu que nada estava acontecendo.

O problema é que Bill Browder havia arranjado um aliado que sabia como funcionavam as coisas nos bastidores do poder nos Estados Unidos. Kyle Parker arranjou para o rival de Putin apresentar um depoimento sobre o caso Magnitsky na Comissão de Direitos Humanos Tom Lantos, na Câmara dos Representantes.

Na presença do senador Jim McGovern, presidente da comissão, Bill Browder, depois de relatar toda a história, concluiu: “Sergei Magnitsky é um caso individual, mas há milhares e milhares de outros casos idênticos aos dele. As pessoas que cometem atos como esse continuarão cometendo, a menos que haja uma forma de confrontá-los e lhes mostrar que não há impunidade”. Algumas pessoas choraram ao ouvir o relato da brutalização do advogado, que, preso, condenado e assassinado, não teve oportunidade alguma de se defender — o que deixa evidente que a Rússia não é um Estado de Direito. É uma ditadura com partidos — algo próximo de uma “democradura” —, inclusive de oposição, mas não têm chance alguma de chegar ao poder. Os partidos são unicamente uma forma de “maquiar” a ditadura de Putin e epígonos.

O senador Jim McGovern disse: “Pessoas que cometem assassinato não deveriam ter autorização para viajar aos Estados Unidos nem para investir em negócios aqui. O que gostaria de fazer é não só mandarmos uma carta para Hillary Clinton, como também esta comissão propor uma lei, fazer uma recomendação formal ao Congresso, aprová-la em votação e dizer para o governo que isso, sim, é consequência”. Era o nascimento da ideia de uma Lei Sergei Magnitsky. O senador Cardin concordou em patrociná-la. O senador republicano John McCain decidiu defendê-la.

Em setembro de 2010, os senadores Ben Cardin, John McCain, Roger Wiker e Joe Lieberman apresentam a Lei Magnitsky no Senado. Dizia a lei: “Qualquer pessoa que participou da prisão, da tortura e da morte de Sergei Magnitsky ou dos crimes que ele denunciou teria seu nome divulgado publicamente, seria proibida de entrar nos Estados Unidos e os bens que tivesse no país seriam congelados”.

Ao receber a notícia, o governo de Putin contra-atacou e condecorou alguns dos envolvidos no assassinato de Sergei Magnitsky. “O prêmio de Melhor Investigador foi para Pavel Karpov e Oleg Silchenko, que organizara a tortura de Sergei na prisão.”

Apesar da diatribe de Putin, os senadores americanos permaneceram irredutíveis. Além de manter a restrição de emissão de vistos de entrada para torturadores e assassinos e o congelamento de bens, acrescentaram que a lei “também imporia restrições a todo e qualquer perpetrador de violações flagrantes de direitos humanos na Rússia”.

Em julho de 2011, o Departamento de Estado tentou travar O Projeto de Lei Sergei Magnitsky. O presidente Barack Obama não queria conflito com Putin. Mas o senador Cardin reagiu e publicou um artigo no “Washington Post” favorável à lei e contra a posição do governo. Agora era democrata, Cardin, contra democrata, Obama. Acuado, o governo sugeriu que, no lugar de mencionar apenas a Rússia, a lei fosse global. Entretanto, o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, John Kerry, trabalhava contra a criação da lei. Ele barganhava com Obama: a barragem da lei era um de seus trunfos para assumir a chefia do Departamento de Estado, no lugar de Hillary Clinton.

Os aliados de Bill Browder descobriram que a Rússia seria admitida na Organização Mundial do Comércio (OMC), em agosto de 2012, e poderia negociar “em condições iguais, sem tarifas ou outros custos, com os países-membros”. Mas a emenda Jackson-Vanik impedia que as negociações da Rússia com os Estados Unidos seguissem o mesmo esquema. Os defensores da aprovação da Lei Magnitsky endureceram o jogo: não aprovariam a revogação da emenda — exceto se a Lei Magnitsky fosse aprovada. Sob pressão, John Kerry desistiu do veto e a Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou a lei.

A Câmara dos Representantes aprovou a Lei Magnitsky de Responsabilização por Violações do Estado de Direito por 365 votos a favor e 43 contra. No Senado, foi aprovada por 92 votos contra 4. Graças ao “sacrifício” de Sergei Magnitsky “abriu-se uma fenda na muralha de impunidade que aprisiona a Rússia moderna”, afirma Bill Browder.

A reação de Putin não pode ser qualificada de infantil, e sim de cruel. Ele orientou a Duma, a Câmara baixa do parlamento russo, a aprovar uma lei proibindo a adoção de crianças órfãs russas por famílias americanas. “A proibição de Putin era relevante porque, ao longo da década anterior, mais de 60 mil crianças órfãs russas tinham sido adotadas por famílias americanas”, assinala Bill Browder. Putin usou os russos, prejudicando-os, para retaliar. Os russos organizaram protestos públicos contra a lei que passou a ser chamada de Lei Herodes.

A ira do político russo, na opinião de Bill Browder, tem uma explicação: “O episódio custou a Putin algo que ele estimava muito mais do que dinheiro: custou-lhe a aura de invencibilidade. Humilhação é a sua moeda; ele a usa para conseguir o que quer e para colocar as pessoas em seus lugares. Pela sua lógica, ele só se considera vencedor depois que seu adversário fracassa, e não se sente feliz se o adversário não está no fundo do poço.

No mundo de Putin, quem humilha não pode, em hipótese alguma, se tornar o humilhado. No entanto, foi exatamente isso que aconteceu na esteira das proibições das adoções”.

Ao se sentir humilhado, Putin ataca. E, pela primeira vez, durante uma entrevista coletiva, citou o nome do “sr. Browder”. A repórter Chrystia Freeland, da Reuters, ouviu de Dmitri Medvedev, primeiro-ministro da Rússia (na verdade, é um preposto de Putin): “É uma pena que Sergei Magnitsky tenha morrido e que Bill Browder esteja solto e vivo”. Trata-se de uma ameaça — e nada indireta.

Em março de 2013, Putin mandou que Sergei Magnitsky, mesmo morto, e Bill Browder, mesmo ausente, fossem julgados pela Justiça da Rússia.

Putin condenou Bill Browder, por meio de um juiz-preposto, e solicitou à Interpol que o prendesse. A Interpol emitiu um alerta vermelho, atendendo o pedido de Putin, que queria evitar que o CEO do Hermitage continuasse viajando e articulando contra ele. Porém, sob pressão da imprensa inglesa, que denunciou que estava servindo a um ditador que agia na ilegalidade, a Interpol recuou e retirou o alerta vermelho.

Putin pode mandar matar Bill Browder, em Londres, onde o investidor mora? Pode. O esquadrão de assassinos da FSB usa vários artifícios para matar pessoas, como material radioativo (polônio), como o que matou Alexander Litvinenko, em qualquer lugar do mundo, notadamente em nações democráticas, cujos controles são menos rígidos. Sabendo da periculosidade de Putin e dos assassinos da FSB, o CEO do Hermitage e sua família — ele, mulher e três filhos — são protegidos por seguranças. O livro é, aposta seu autor, uma arma sem balas para protegê-lo. “Se eu for morto, você saberá quem me matou”, dialoga com o leitor de sua obra. Os homens do KGB-FSB — Putin é um deles — não perdoam seus inimigos. Caçam-nos em quaisquer cantos do mundo, sem observar limites de países e leis. E sabem esperar.

A família de Sergei Magnitsky — a viúva Natasha e seu filho, Nikita —, levada por Bill Browder, mora em Londres. “Pela primeira vez desde a morte de Sergei, eles se sentiam seguros.” O livro contém três fotos do menino Nikita. Em todas seu rosto está contraído e triste.

A história de Sergei Magnitsky faz Bill Browder lembrar a literatura de Nikolai Gógol, Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski. Mas a perseguição ao advogado, com prisão, processo (sem direito de defesa) e, finalmente, assassinato — sem prova de que tenha cometido qualquer crime —, lembra muito mais o tcheco Franz Kafka do romance “O Processo”.

O documentário holandês “Justice for Sergei” conta a história do advogado assassinado pelo regime de Putin.

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.