Famílias são um celeiro de situações as mais inverossímeis, que só quem vive pode classificar. A loucura diária de uns passa pelo cotidiano mais banal para outros, e Woody Allen decifra como poucos a arte de misturar assuntos os mais diversos em torno de pessoas que dividem os mesmos lugares, voluntariamente ou não, compondo um universo à parte de todo o mundo que as cerca, girando uns ao redor dos outros, até que principiam os choques, imperceptíveis no começo, mas que ganham força à medida que suas mágoas, arrebatamentos e frustrações deixam a zona cinzenta e fria em que se escondem e vêm à tona, dando azo a culpas, vexames e uma modalidade muito particular de tédio.
As seções com títulos engraçadinhos ou frases de efeito que pontuam as passagens de “Hannah e Suas Irmãs”, no Prime Video, como episódios independentes derramando-se sobre a vida quase secreta daqueles personagens nada convencionais, até podem soar farsescos demais, vesanos como o delírio de um dia de calor intenso no fim do outono em Manhattan, mas apenas explicitam o jeito de enxergar as pequenas tragédias que só Allen tem, protegendo-se por trás dos óculos de lentes espessas com os quais capta detalhes que as grandes vistas não pegam.
A exemplo do que acontece em todos os seus filmes do primeiro terço da carreira, aqui o diretor privilegia o texto irretocável para que caibam seus muitos comentários acerca de paranoias oscilam do humor para o ataque nunca gratuito à dissimulação que cresce por debaixo da pretensa normalidade de lares burgueses, feito cogumelos venenosos que acabam à mesa num jantar pelo Dia de Ação de Graças. É assim que Allen entende o cinema, e “Hannah e Suas Irmãs” talvez seja seu trabalho mais revelador.
Allen cobre dois anos da vida das personagens do título, além de seus respectivos cônjuges, mas é claro que ele não se daria por satisfeito se não descobrisse uma maneira de escarnecer de cada um deles, a partir das brechas que encontra em suas almas frágeis. A celebração do feriado mais popular entre os americanos, de onde o diretor se lança para elaborar o perfil multidimensional daquele estranho grupo, não deixa de ser a primeira grande ironia, de um judeu sempre muito confortável em criticar também suas origens.
Elliot, o contador interpretado por Michael Caine, é casado com Hannah, de Mia Farrow, mas resolve deixar de sofrer pelo desejo silencioso por Lee, irmã de sua mulher, e dá início a um cerco implacável à anti-heroína de Barbara Hershey, de longe a performance mais marcante entre atores de talento. Lee, uma ex-alcoólatra que continua a frequentar as reuniões do grupo de apoio no qual vislumbrou uma chance mínima de cura há alguns anos, mora com Frederick, um artista plástico decadente e tomado pela tristeza que o mantém isolado da família da companheira e do resto da humanidade.
Max von Sydow (1929-2020) confere o tom exato de melancolia a Frederick, e empresta ao filme como um todo a sofisticação que sempre o caracterizou e com a qual passou a ser cobiçado por Hollywood, mormente depois de “O Sétimo Selo” (1957), de Ingmar Bergman (1918-2007). Holly, a terceira irmã de Hannah e Lee e a mais insegura, é um porão escuro de solidão e reflexões sobrepostas umas a outras, uma prova de fogo de que Dianne Wiest se sai bem.
Por natural, Allen encarna o respiro cômico na pele de Mickey, o diretor artístico de uma emissora de televisão à beira de um ataque de nervos que não sossega enquanto não comprovar a seus subordinados e a Hannah, sua ex-mulher, com quem conserva uma amizade desinteressada. Não deixa de ser uma agridoce ironia que Allen e Farrow apareçam tão coesos, ainda casados na vida real, e rompam seis anos mais tarde, protagonistas de um dos mais ignominiosos barracos entre celebridades. Essa infeliz piada metalinguística em “Hannah e Suas Irmãs” já vale os 107 minutos.
Filme: Hannah e Suas Irmãs
Direção: Woody Allen
Ano: 1986
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10