O que explica a popularidade de Jair Bolsonaro Foto / Marcelo Chello

O que explica a popularidade de Jair Bolsonaro

Luís Inácio Lula da Silva talvez não imaginasse — nenhum brasileiro imaginava — que surgiria uma liderança cujo carisma pessoal seria capaz de desafiar a que ele próprio representa. Lula era quase uma excepcionalidade histórica até 2017, quando surgiu, pela direita, Jair Messias Bolsonaro. Entre os três mandatários mais queridos do povo em 133 anos de República (tivemos até o momento 36 presidentes), dois seguramente são os atuais adversários (ou “inimigos”, na opinião de um deles).

Lula e Bolsonaro são os únicos de origem pobre que não se formaram em universidades e permaneceram iguais ao homem comum, em seus modos rústicos e falas grosseiras, elos indispensáveis de identificação e sintonia com as massas. Apesar de existir um elemento calculista quando falam errado ou comem farofa, por exemplo, não se pode negar que são autênticos homens do povo. Mas o que significa exatamente a expressão “homem do povo”? Além das aparências, a popularidade requer outras coisas e pode ser mensurada.

Um pouco de história ajuda a contextualizar os fatos. Embora o presidente Nilo Peçanha (entre 1909 e 1910) tenha nascido pobre e fosse negro — era discriminado por isso —, conseguiu se formar em Direito e exerceu o jornalismo. De resto, até 1930 não se pode falar em “presidentes populares”, não porque inexistiam pesquisas, mas devido às próprias características do regime republicano: o Brasil era uma oligarquia e não uma democracia. No lugar de Justiça Eleitoral, havia “currais eleitorais” e “voto de cabresto”. Portanto, de Deodoro da Fonseca — primeiro presidente — a Washington Luís, eliminam-se de cara 12 mandatários. Getúlio Vargas subiu ao poder em 1930, destituindo (ou antes, compondo com) o coronelismo. Apesar de implantar uma ditadura, foi o primeiro governante popular do país e modelo de práticas populistas.

Seu carisma entre a população carente — muito maior que a de hoje — era notável, e as razões para isso foram inúmeras, principalmente a criação do Ministério do Trabalho, da Justiça do Trabalho, da CLT e do salário-mínimo. O movimento queremista, em 1945, deixou claro o quanto Getúlio continuava querido pela gente comum depois de 15 anos no poder, e quando morreu, em 1954, 67 mil pessoas acorreram lacrimosas ao seu funeral, qual órfãs enterrando o legendário “Pai dos Pobres”.

Entre Getúlio e Lula, o primeiro nome “popular” que nos vem à mente é o de João Goulart, derrubado pelo golpe militar de 1964. Jango recebeu amplo apoio dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais organizados — seu período foi de polarização ideológica igual ao que vivemos agora. Cuba havia se tornado comunista em 1959, e a elite latino-americana temia que a revolução se alastrasse por todo o continente. Mas Jango, um estancieiro gaúcho como o próprio Getúlio, não era homem do povo e nem exatamente popular, faltando-lhe o profundo carisma de seu padrinho político. Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor de Melo e Dilma Rousseff estão, todos, numa linha intermediária: ou tiveram origem na classe média urbana ou perfil burocrático. Jânio Quadros, José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer não contam, como também não contam os cinco generais que presidiram o país entre 1964 e 1985. Além de oriundos da classe média (quase metade rural e imigrante), nenhum desses presidentes foi consagrado pelas urnas, porque ou foram escolhidos indiretamente (os militares) ou eram vices (os civis).

As pesquisas eleitorais existem no Brasil desde 1945, mas só se popularizaram com as eleições democráticas pós-1985. Na primeira delas, em 1989, a população já era influenciada por esses índices. Sob este critério, Lula permanece imbatível, batendo 83% de aprovação no fim de seu segundo mandato, em 2010 (de acordo com o Ibope). Jair Bolsonaro, por sua vez, está entre os mandatários mais mal avaliados da Nova República: entre “ótimo/bom” e “regular”, atingiu no máximo 39% de aprovação (segundo o Datafolha).

A explicação para essa desvantagem é que o petista conseguiu não só implantar políticas públicas de redistribuição de renda e promoção da igualdade. Ele conseguiu, também, transitar entre os diversos setores da sociedade, para além da vastíssima camada dos mais pobres. Uma de suas bases, inclusive, foi a Igreja. Bolsonaro, por sua vez, radicou sua liderança numa bolha de sectários, tornando-se mais querido pela classe média. Ser popular, para o líder da extrema-direita, nunca significou identificação orgânica com as classes D e E, e seus direitos. Por essa razão, pode ser caracterizado como autêntico demagogo, figura da Grécia Antiga que a Wikipédia define como “líder que ganha popularidade em uma democracia explorando as emoções, preconceitos e ignorância” das massas.

Certamente o objetivo de um demagogo não é fazer as pessoas pensarem racionalmente, daí seu natural desprezo pela educação, a ciência e a cultura. Demagogos só têm a ganhar com a estupidez. Essa estratégia explica, em parte, por que Bolsonaro quase foi reeleito nas eleições presidenciais de 2022, em um ambiente eleitoral ainda fortemente polarizado entre a extrema-direita e a esquerda.

Na ocasião, o melhor nome da direita tradicional liberal foi uma liderança de carisma moderado, Simone Tebet (MDB), sendo que os demais eram inexpressivos, como Soraya Thronicke (União Brasil) e Luiz Felipe d’Ávilla (NOVO). Na verdade, a direita tradicional se alinhou e fortaleceu Bolsonaro desde o início das eleições, porque enxergava nele o único com chances reais de ainda derrotar Lula, excluído da eleição de 2018 por decisão da Justiça, em decorrência dos processos da Lava Jato.

Além dessas facilidades, o candidato do PL manteve um discurso altamente sensível e eletrizante do ponto de vista social. Os chatos e intraduzíveis temas de Estado — economia, saúde, meio ambiente, educação, segurança pública etc. — continuaram oscilando na órbita das questões morais e dos valores: a religião e a família, de facílima assimilação entre iletrados e conservadores em geral. Os preconceitos de classe, cor e gênero sexual, arraigados no inconsciente coletivo, continuaram a ser habilmente explorados. Desde o início da escalada bolsonarista, esse discurso despertou uma camada adormecida (e perigosa) da psiquê social brasileira mais tradicional, tão conhecida de historiadores e sociólogos.

Bolsonaro, também, sempre emulou o bom mocismo ao “se opor” ferrenhamente “ao sistema”, defendendo com ardor incomum coisas realmente valiosas, como a liberdade e o patriotismo. Vistas com o máximo de isenção, não há como negar que um pouco mais de patriotismo faria bem aos brasileiros (é o oposto do “complexo de vira-lata”, apregoado pelo próprio Lula).

Faz-nos bem, igualmente, respirar a liberdade: quem poderia ser contra? Não é aliás pelas liberdades de escolha que se batem as minorias sexuais, contra a intromissão do Estado na vida do cidadão? Por fim, em todo ser humano há no íntimo uma desconfiança natural contra o sistema. Ele de fato existe, corporificando-se naquelas instituições onde sabidamente reina o corporativismo e os privilégios, em benefício de uma minoria parasitária.

O Poder Judiciário é, sim, um ótimo exemplo, assim como certos órgãos de imprensa — que não mentem, mas omitem — agem em sintonia com os interesses sistêmicos. Todo cidadão na faixa dos cinquenta anos se lembra do Programa Silvio Santos iniciar rendendo homenagens ao dia a dia do presidente, o então General João Batista Figueiredo.

O problema de Bolsonaro não são muitas das coisas que diz defender ou ser contra, e que lhe dariam razão. O problema dele é a escandalosa distância entre o discurso e a prática: é possível fazer uma lista de suas contradições, inclusive as de ordem moral. A credibilidade de um político devia estar sempre associada à coerência. Não sendo assim, a conclusão lógica é que Jair Bolsonaro continua popular porque o senso comum, por preguiça mental ou simples identificação, não deseja abrir os olhos para essas escandalosas contradições: seria abdicar do “mito” que os ampara em sua orfandade e desespero íntimo. É algo que a Psicologia (e a psiquiatria, nos casos extremos) explica.

Os fanáticos não se importam com todas aquelas intragáveis discrepâncias morais de um moralista incoerente, porque possivelmente replicam as mesmas incoerências no seu dia a dia. São as pessoas violentas que, de fato, se identificam com o ódio e a mentira (os autênticos fascistas, entre seus seguidores). Eles constituem apenas uma parcela do eleitorado de Bolsonaro, se bem que a parcela mais significativa (talvez 50%). Há também os espertos, pessoas que não ligam para nada disso, apenas não querem o Estado imiscuindo em seus negócios. Estes são tão individualistas quanto o primeiro grupo, e provavelmente são fãs do ultraliberalismo de Paulo Guedes — aquele economista que criou a Dreadnoughts International, uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, onde investiu sua fortuna para deixá-la a salvo da economia que ele próprio dirigia, no Brasil (todos podiam acreditar nela, menos o próprio ministro). Um terceiro tipo de bolsonarista é a vasta massa ignorante e manipulável, autêntico “rebanho” da voracidade neopentecostal que cresce como cogumelos, nas periferias deste país, por meio da qual o ex-presidente ainda alcança as classes D e E. Por incrível que pareça, há entre os eleitores de Jair Bolsonaro até as pessoas que votaram nele por falta de opção, à direita: uma minoria sinceramente patriota e desconfiada do sistema (por isso ingênua, já que seu candidato é o próprio sistema, no que ele possui de mais ordinário).

Todas essas pessoas têm, em comum, a crença no mito comunista, pelo qual nutrem verdadeiro horror. A verdade é que Jair Bolsonaro é o principal mito — isto é: uma coisa que não existe — dessa “cabulosa” ascensão de um oligofrênico desatinado ao poder, no Brasil.

J.C. Guimarães

Crítico literário.