A editora Harper Collins começou a reeditar uma das obras mais sofisticadas e profundas da literatura brasileira moderna. Os leitores de hoje têm assim a oportunidade de conhecer e reconhecer o escritor Autran Dourado (1926-2012), que andou um tanto relegado ao segundo plano no campo cultural, diante da avalanche de lançamentos em tempos de redes sociais. Já foram lançadas as novas edições de “A Barca dos Homens” (1961), “Ópera dos Mortos” (1967) e “Os Sinos da Agonia” (1974).
A obra do autor pode atrair o interesse por conta da atenção dada às narrativas recentes que tem como cenário o interior do Brasil, sobretudo o Centro Sul brasileiro. Há um olhar novo para os autores e as autoras que deixam de lado as metrópoles inviáveis, com sua violência, e tentam desvendar a vida interiorana. Mesmo caminho tomou as telenovelas, em busca dos segredos de um espaço que mostra dinamismo na economia e surpreende ao dominar mercados culturais como o da música popular.
O universo de Autran Dourado é a pequena cidade em Minas Gerais, um dos berços do nascimento do Brasil. Um lugar de traços próprios e isolado da região costeira do país (Rio de Janeiro, Salvador, Recife). Silviano Santiago lembra que, nesse isolamento, os mineiros preservaram um “bolsão linguístico”, uma forma de falar e escrever muito particulares. Pesa certamente a mistura de vida urbana e rural, com uma herança forte da religiosidade católica. É uma terra de silêncios e angústias.
“A personalidade circunspecta [de Autran Dourado] é muitas vezes o disfarce do ‘espírito de Minas’, que encobre loucura e ‘quarta-feirices’, que agarra com prazer de fuxico e sincera piedade os acontecimentos escandalosos do dia-a-dia, que decola com assombrosa facilidade — e sem pose acaciana — dos fatos insignificantes para as mais requintadas significações”, assinalou o crítico João Luiz Lafetá, em ensaio no livro “A Dimensão da Noite”, acrescentado que o autor é mestre em “assombros e anedotas”.
A partir do texto de Lafetá, pode-se imaginar um cronista de costumes e provinciano, ou seja, um regionalista no pior sentido da palavra. Mas é justamente o contrário o que se vê nos livros de Autran Dourado. Ele usou a mais alta técnica da escrita do século 20 para esquadrinhar o emaranhado da vida mineira em sua versão miniatura, tortuosa e opaca. Para isso, a referência mais marcante para ele está na obra de William Faulkner, mais precisamente em obras como “Absalão, Absalão!” (1936).
Fantasmas do moderno
Numa tentativa de sintetizar o estilo de Autran Dourado, é possível pensar numa escrita iluminista para capturar a vida barroca da pequena cidade mineira. Um choque de concepções no plano estético que reproduz, em certa medida, o sentido histórico do Brasil. O país tem grandes projetos modernizantes, herdados da tradição iluminista, para o seu “todo”. Mas suas “partes” são resultado do que existe de mais obscuro no mundo. O ideal das Luzes não consegue transformar as Trevas cotidianas.
Como nas narrativas fantásticas de Murilo Rubião, outro que desvendou as sombras mineiras, há traços do insólito, estranho e fantasmagórico nos livros de Autran Dourado. É o caso da personagem Rosalina, de “Ópera dos Mortos”. Ela guarda um luto infinito pelos antepassados e continua a viver no sobrado da família em Duas Pontes — a cidade fictícia que se repete na obra do escritor mineiro, tal como o condado de Yoknapatawpha, criado por Faulkner para narrar a decadência do sul dos Estados Unidos.
O casarão de Rosalina tem o relógio quebrado na parede, que marca o tempo parado no local. Suas roupas, seu isolamento do mundo exterior, tudo leva a uma representação dos aspectos barrocos da cultura brasileira. A contradição aparece nas figuras de seu avô (Lucas Procópio) e do pai (João Capistrano). Eles representam as gerações do antigo Brasil (escravidão) e do novo país (a caminho da modernidade). Porém, o velho continua a existir e deixa vestígios sombrios pelo tempo presente.
As fantasmagorias do passado pipocam a todo momento, misturado às coisas modernas em “Ópera dos Mortos”: “João Capistrano não era do mesmo feitio do pai [Lucas Procópio]. Se lembrava de João menino, os dois galopando pelos campos, nas matas antes das derrubadas para o plantio do café. Aquela aragem de cheiro bom, gostoso, que vinha do cafezal. João, vamos, é seu pai que está chamando, ouvia a voz vinda de lá da senzala. João assuntava o ar, para ainda ouvir a voz”.
O interior brasileiro foi feito por figuras como o avô de Rosalina e que tem sua história contada no romance “Lucas Procópio” (1985). No espírito faulkneriano, os personagens de Autran Dourado funcionam como fantasmas aparecendo em diversas obras. Ele era o desbravador do sertão, no tempo da escravidão. A ocupação do interior resultou numa sociedade assentada numa realidade distante de um ideal civilizatório. Na verdade, foi uma forma muito particular de se instalar nas regiões afastadas do litoral.
A escrita do relojoeiro
A característica de Autran Dourado estava na construção meticulosa das narrativas. Tudo era milimetricamente pensado e projetado, conforme ele deixou registrado nos livros “Uma Poética do Romance: Matéria de Carpintaria”, “O Meu Mestre Imaginário” e “Breve Manual de Estilo e Romance”. Trata-se de uma escrita racional que talvez apenas dessa forma ele pudesse investigar o real de uma cultura local. De novo: a razão iluminista para de desvendar o emaranhado da formação brasileira.
Flora Sussekind buscou no conto “A Glória do Ofício” (1957) uma explicação para a estratégia do escritor mineiro: “O narrador, menino de ‘mãos inquietas’, sempre fazendo e desfazendo caixas e brinquedos e com uma ‘predisposição inata para o lado factual das coisas’, acabaria se tornando relojoeiro, depois revisor de textos, depois tratador de pássaros. Mas chegaria a imaginar-se, a certa altura, um escritor potencial. Não de livros de poesia ou ficção. Pois, tendo em vista sua capacidade prática, o modelo mais provável, a seu ver, seria o dos manuais técnicos”.
O relojoeiro carrega a dupla face de ser um artesão (profissão ligada ao passado) e um técnico da manufatura industrial (ofício da modernidade). De modo análogo, Autran Dourado traz em sua escrita a tradição do narrador oral, rural, comunitário, para misturá-la às melhores técnicas modernistas de William Faulkner. Significa que aquela Duas Pontes (barroca, fechada em si) é enxergada por meio de uma lupa ultramoderna, cuja lente foi lapidada pelos mais inovadores escritores do mundo.
A grande concretização de estilo, Autran Dourado conseguiu alcançá-la no romance “O Risco do Bordado” (1970). O livro se passa em Duas Pontes do período entreguerras do século 20, na crise do café. São sete capítulos escritos de forma geométrica (número de páginas, por exemplo) para investigar as figuras da vida do menino João. Aparecem as mortes, os incestos, os suicídios da família, os loucos, além de pessoas da rua da cidade (os mitos da linda prostituta, da artista de circo e do jagunço de outras eras).
“O bisavô Zé Mariano era um homem antigo e forçudo, sem as finuras de hoje-em-dia, conforme vovô Tomé dizia; acostumado a amansar cavalos que ele mesmo ia buscar no sertão, pelejando nas derrubadas de matas, feitorando os seus escravos e camaradas no plantio dos primeiros cafezais, na demarcação do seu território, muitas vezes a faca e trabuco — na sua hoje Fazenda do Carapina”, diz o narrador de “O Risco do Bordado”, que traz um encadeamento de tempos históricos e dos personagens.
O barroco modernista
A sobreposição entre traços arcaicos e modernos é uma característica bem explorada pelos artistas modernistas e tropicalistas no Brasil do século 20. O passo adiante dado por Autran Dourado está na contradição de usar a escrita sofisticada para capturar a complexa teia do interior mineiro. Trata-se no fim das contas de um “barroco modernista”, conforme André Botelho chamou a obra de Pedro Nava. A intenção é jamais imitar na escrita o barroquismo da formação brasileira, mas sim criticá-lo e mostrar seu fundo falso.
O bem-estar de Rosalina e João dependem de um passado sombrio de suas famílias. Não é por acaso que o sentido narrativo de “O Risco do Bordado” está na desmontagem ou, se preferirmos, na desnaturalização. A prostituta Teresinha Virado é uma musa idealizada por João, mas não passa de uma mulher miserável. O jagunço Xambá era temido pela cidade, mas é o pobre diabo quando visto de perto. Como bom escritor moderno, Autran Dourado sabia que a época dos mitos acabou e só restam fantasmas.