Ter-se em primeiro lugar, se assumir como sua prioridade zero, passar por cima da falsa necessidade de ser obrigado a corresponder aos tolos (e muitas vezes assassinos) desejos dos outros, que não têm a menor ideia de quem somos virou uma maldição nestes tempos em que o politicamente correto transforma tudo numa batalha de vida e morte à procura do cálice sagrado da única verdade.
As redes sociais juntaram-se à equação como uma potente difusora de ódios inaplacáveis, e quase sempre é urgente tomar um belo sacode, metafórico ou nem tanto, para se acordar do pesadelo brumoso a que nosso próprio cérebro nos lança. É o que se dá com Renee Bennett, a personagem central de “I Feel Pretty”, uma linda mulher à Renascença que passaria pela Gioconda de Da Vinci não fosse ser muito mais expansiva e não se contentar um desenxabido sorriso enigmático. É bem verdade que ela nem sempre foi assim, mas Abby Kohn e Marc Silverstein vão em seu socorro, levando-a à queda que há de salvá-la.
Os diretores-roteiristas tratam de um assunto seríssimo com humor, mas não se engane: quanto mais se ri e se castigam os maus costumes, mais perto se chega de se entender o tormento que aflige quem não se aceita. E o porquê disso.
A Renee de Amy Schumer tem tudo para ir longe, mas a insegurança que plantam em sua cabeça — e que ela faz questão de regar todos os dias — embarga-lhe as passadas. Schumer, uma presença ensolarada ao longo dos 110 minutos, destacao quanto pode a leveza de sua personagem, quiçá preparando a audiência para o contratempo grave que ela sofrerá logo no primeiro ato.
Quando esse momento chega, afinal, e ela bate a cabeça durante uma aula de spin de uma academia sempre cheia de Manhattan, fica desacordada por uns instantes, pensam que ela vai morrer, mas quando ela recobra a consciência, é mais dona de si do que jamais poderia ter sido.
Ela se esquece dos tutoriais de cabelo e maquiagem no YouTube e artigos da “Cosmopolitan”, obrigatórios para toda mulher que não deseja dar a impressão de estar largada à própria sorte, inventando desculpas relacionadas ao talento profissional para justificar os quilos extras ou a dificuldade de se paquerar nos aplicativos de namoro — um trabalho de Hércules para qualquer pessoa, independentemente de peso, idade, gênero ou condição social, e se reconhece bonita por si só. É claro que o fato de trabalhar numa empresa de cosméticos não é-lhe favorável, mas ela tem alguns coelhos na cartola.
Kohn e Silverstein, os nomes por trás de sucessos congêneres a exemplo de “Nunca Fui Beijada” (1999), dirigido por Raja Gosnell, “Ele Não Está tão a Fim de Você” (2009), de Ken Kwapis, e “Como Ser Solteira” (2016), levado à tela por Christian Ditter, exacerbam o absurdo das situações, chegando ao ponto de colocar na boca de sua mocinha insânias como a sugestão de um possível flerte quando Ethan, o vendedor que a atende, pergunta-lhe sobre o número de seu manequim e ela intui que ele, disfarçadamente, quer, seu telefone. Schumer e Rory Scovel compõem um casal acima de qualquer vigilância, do peso ou seja lá do que for, num elenco de beldades encabeçadas por Naomi Campbell, irritantemente blasée na pele da dona da agência de modelos a que Renee quer se cadastrar.
Filme: I Feel Pretty
Direção: Abby Kohn e Marc Silverstein
Ano: 2018
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 8/10