A vida no crime demanda alguns predicados. Quem envereda por esse caminho tortuoso, cheio de armadilhas, metafóricas ou não, sabe que a capacidade de pensar em alternativas quando o plano infalível faz água é tão importante quanto o maior dos butins que se poderia ter depois de uma operação ambiciosa. O refinado ladrão de arte que protagoniza “Dentro” passara a vida superestimando sua esperteza, até que fica preso numa cobertura em Manhattan enquanto servia de títere por manipuladores que nunca aparecem num roubo multimilionário.
O grego Vasilis Katsoupis encontra o tom exato de suspense e drama e os tempera com a ação possível, frisando o desespero de seu pobre vilão, ainda que sempre falte detalhar por que esse homem sem qualidades e sem nome, invisível, vai parar ali. Não obstante, Katsoupis faz de seu filme em apanhado de belas sequências em que registra o esmorecimento físico e, sobretudo, moral daquele criminoso talvez não arrependido, mas decerto tomado de reflexões sobre suas escolhas até ali, o que se corporifica no semblante marcado de seu atilado intérprete.
Nemo desativa o alarme de segurança do palacete suspenso em que entra feito uma mosca e assalta o maior número de pinturas que consegue, quase todas do expressionista austríaco Egon Schiele (1890-1918), célebre por seus autorretratos, inclusive nus, e por ter morrido de gripe espanhola, em 1918, no fulgor de seus 28 anos. Esta é uma informação que passa em branco, mas por baixo que se permite ver, o diretor e Ben Hopkins, seu corroteirista, a todo momento sugerem a frustração essencial de Nemo, uma piada metalinguística que pode, sem dúvida, remeter ao simpático peixinho da animação de Andrew Stanton, lançada num distante 2003, mas vai mais fundo.
Nemo é mesmo ninguém, feito o personagem criado pela pena de Júlio Verne (1828-1905) em “Vinte Mil Léguas Submarinas” (1870), e esse é o gancho de que o filme se socorre para desvelar, malgrado em parte, a história por trás do sujeito visivelmente amargurado que exibe, recebendo ordens de gente mais nova, meio autoritária e que, conforme se vai ver, nada comprometida com ele. Katsoupis menciona um lance da infância de Nemo, na qual ele lembra os esboços que fazia no caderno de desenho que prezava mais que os amigos e a família quando garoto. Como tivesse acabado de invocar o mais poderoso demônio, quando reúne as telas e se apronta para sair, o mecanismo que controla as portas e janelas lacra todas as passagens. O desconforto de Nemo cresce junto ao do público ao se reparar que é bem provável que os moradores estejam em férias prolongadas, e não vão dar as caras tão cedo.
A geladeira fornida de uma lata de caviar, pão embolorado e meia garrafa de vodca torna-se ainda mais ameaçadora ao ser aberta e desembestar ao ritmo de “Macarena” (1993), o hit do duo espanhol Los Del Río. Não sai uma gota das torneiras, os excrementos se acumulam na bacia sanitária e no pequeno espelho d’água da sala de estar, o líquido é intragável.
Todo esse desalento raivoso fixa óbvio nas expressões marcadas de Willem Dafoe, que o eleva à enésima potência ao deixar de lado a vergonha e exibir o corpo algo curvado pela artrite, e, claro, se começa a ter pena dele. Desse ponto em diante, a estética de “Dentro” se aproxima dos instantes finais de “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland, a mais engenhosa contribuição do cinema recente para se pontuar sobre a inestimável ameaça que pode (vai?) se tornar a inteligência artificial para o gênero humano.
A corda do absurdo é esticada ao máximo nas vezes em que Katsoupis lança mão de imagens de circuito interno de TV e mostra uma faxineira, a quem Nemo dá o nome de Jasmine, subir e descer pelos andares, até parar a meio metro dele, separada pela parede de trinta centímetros de concreto e um portal de madeira de lei, enquanto aspira o carpete da cobertura. Mesmo de longe, Eliza Stuyck devolve a humanidade que Nemo perdera, bem como a onipresença do dono da propriedade e sua filha, representados por Gene Bervoets e Ava von Voigt, nunca se constituem uma referência de que ainda tem algum laço com este plano, ao contrário.
Os dois se assemelham a espectros dispostos a enlouquecer de vez o desditoso bandido, cuja única saída é usar os vários móveis da residência para improvisar uma torre e subir até a claraboia, cinco metros acima, única abertura que a automação não cobre, sofrendo com a oscilação homicida da temperatura, que primeiro vai a mais de quarenta graus, e despenca para quase zero.
Ao show de um homem só personificado por Dafoe une-se o primoroso design de produção de Thorsten Sabel, que transforma o apartamento num parque de diversões maldito, uma espécie de gincana em que o primeiro prêmio é nada menos que permanecer vivo. Respiros narrativos a exemplo do método desenvolvido por Nemo para recolher a água da irrigação hidropônica do jardim de inverno remete a “Perdido em Marte” (2015), de Ridley Scott, com a diferença de que o agora anti-herói que só nos inspira uma inútil comiseração está a duas polegadas do mundo vibrante da Grande
Maçã, em se considerando as placas translúcidas e antirruído que revestem o living. Ninguém sabe se ele escapou, talvez nem Katsoupis, mas ele aprendeu. É o que verdadeiramente importa.
Filme: Dentro
Direção: Vasilis Katsoupis
Ano: 2023
Gêneros: Thriller/Suspense
Nota: 8/10