Segunda-feira de Carnaval. O ano é 2024. A capital soteropolitana está em polvorosa, com um contingente altíssimo de turistas, e a folia apresenta uma intensidade maior do que em anos anteriores — mesmo após a experiência ainda recente de uma cruel pandemia. Quem se importa?! A única preocupação dos baianos é: quem vencerá o prêmio de melhor música deste ano? “Perna Bamba” ou “Macetando”?
Em um dos raros momentos de sol a pino, com os trios elétricos já preparados para mais um dia de festa, decidi cumprir minha missão e fiz exatamente o que qualquer outro cidadão consciente faria em meu lugar: liguei o computador e assisti ao filme “Cinderela Baiana”, que em setembro completa exatos vinte e seis anos.
O filme, estrelado por Carla Perez, retrata a vida de uma garota extremamente pobre do interior, cujo maior prazer é dançar. Enquanto outras crianças de sua região tapam buracos nas estradas em troca de moedas de caminhoneiros, a pequena Carlinha se diverte dançando ao som de absolutamente nada. Certa vez, seu pai recebe uma oferta de emprego justamente quando sua mãe falece sem nenhuma explicação aparente. Pai e filha mudam-se para a capital, Salvador, e é lá que se desenrola a história da menina, que cresce e enfrenta diversas confusões em sua busca pelo sonho de se tornar dançarina.
Para um soteropolitano como este que vos escreve, o cenário é extremamente nostálgico: a antiga Fonte Nova, as palafitas, o Dique antes da reforma, a Cidade Baixa, o Pelourinho, as músicas que marcaram época — como as de Cátia Guimma —, enfim, o resgate de um passado memorável compensa um pouco o resto do contexto. Porque, além disso, é mais agradável estar no meio da folia de Bell Marques, mesmo correndo o risco de empurrões, do que assistir a isso. É simplesmente horrível.
Não é necessário ser especialista ou cinéfilo para detestar cada segundo da trama. Enquanto a Cinderela original valoriza a fragilidade da protagonista, atraindo a empatia do público e seu apoio, na versão baiana, a expectativa gira em torno de quanto tempo falta para o fim daquela tortura. A história simplesmente não faz sentido. Na verdade, é bem possível que se torça contra a protagonista, principalmente devido à sua falta de carisma e à trama desnecessária.
É uma experiência tão risível quanto “Ó paí, ó”, mas o riso é involuntário, provocado por uma espécie de vergonha alheia. O ponto alto do filme é o retorno triunfante de Carlinha ao seu antigo vilarejo: com um carro de luxo, ela aborda as crianças que perderam a infância à beira da estrada, lança um par de frases motivacionais e, sem mais, todos começam a dançar ao som de “Segura o Tchan”, enquanto, ao fundo, um helicóptero misterioso aparece. Pura arte cinematográfica!
Tão desastroso quanto surreal, questiona-se por que tal obra não figura entre as indicadas do Enem. Apesar disso, recomendo enfaticamente que você, leitor, assista ao filme e tenha uma experiência tão marcante quanto a minha. Afinal, se eu assisti, você também merece “apreciar”. Aqui, lamentando a mais de uma hora de vida perdida com a “Cinderela Baiana”, questiono-me sobre o que me leva a submeter-me a essas torturas mentais gratuitas. Talvez seja um sinal divino para me preparar para o Carnaval e tentar esquecer essa tragédia cinematográfica.
O problema é que, em vez de perder um sapato, como na história original, é mais provável que eu perca o celular — roubado, o que me faria voltar para casa antes da meia-noite. Mas essa é a essência da folia carnavalesca da “boa terra”, nada fora do comum. E é possível que alguém encontre e devolva o telefone; já o tempo gasto com “Cinderela Baiana”, esse ninguém pode compensar.