A melhor comédia romântica de 2024 acabou de estrear no Prime Video Divulgação / Amazon Prime Video

A melhor comédia romântica de 2024 acabou de estrear no Prime Video

A enxurrada de séries levadas ao ar pelas emissoras de televisão americanas — e principalmente pelos cada vez mais numerosos serviços de streaming — tem uma única grande função: captar a atenção do espectador para as possíveis novas estrelas que prometem despontar para trabalhos de mais fôlego. Além de concentrar a maior quantidade de rostinhos bonitos da cultura pop, “Riverdale” (2017-2023), exibida pela CW, foi um balão de ensaio para que eclodisse uma geração de atores especialmente talentosos. Pelo que se depreende de sua performance em “Segredos de Um Escândalo” (2023), de Todd Haynes, Charles Melton talvez seja o caso mais flagrante de ator que extravasa o verniz da boa estética e vai muito mais longe do que o público supunha que ele fosse capaz.

“Upgrade: As Cores do Amor”, contudo, também dispõe de um exemplo da boa colheita obtida com o seriado que desdobra os apuros da iminente vida adulta em meio a crimes sem explicação. Camila Mendes é quem confere sentido ao longa de Carlson Young, uma releitura grosseira de “O Diabo Veste Prada” (2006), a fábula de David Frankel à Charles Perrault (1628-1703), que vale-se ainda de uma das ideias centrais de “Quando Encontrei Você” (2021), de Brian Baugh.

Os roteiristas Christine Lenig, Justin Matthews e Luke Spencer Roberts torcem essas duas narrativas de modo a obter uma fusão em que a primeira sobressai, tanto que a todo instante se espera pela cena em que a heroína de Mendes abdicaria de sua trajetória ascendente para não magoar seus pruridos éticos, como faz a já antológica Andrea Sachs de Anne Hathaway, mas já não se fazem mais mocinhas como antigamente. Para o bem e para o mal.

Ana Santos tem uma gravura da sueca Hilma af Klint (1862-1944) na parede de casa, mas na sequência, Young trata de dinamitar todas as ilusões da audiência quanto a sua protagonista. A “casa” de Ana é o sofá (ou futon, como ela prefere) que levou para o endereço de Vivian, a irmã mais velha interpretada por Aimee Carrero, e Ronnie, o cunhado, com Andrew Schulz num obstinado respiro cômico, e o desenho é uma reprodução vulgar de “O Cisne — Número 1” (1915), uma das primeiras manifestações do abstracionismo puro, antes mesmo de Kandinsky (1866-1944) e Mondrian (1872-1944) se arriscarem no gênero.

Nesse primeiro contato de quem assiste com a personagem, Mendes empresta a Ana trejeitos que fazem-na patologicamente infantilizada, quiçá imaginando que Vivian e Ronnie lhe devem alguma coisa, e a diretora fixa a ação em primeiros planos que fecham no semblante desolado da usurpadora, mestre em história da arte, mas à beira da indigência. “O Cisne” e seu “encontro de forças opostas”, um tropo que Young desenvolve melhor no terceiro ato, são uma boa síntese do que Ana há de viver nos próximos lances; uma das grandes ideias de Ronnie para a desilusão imanente dela é voltar para Tampa, na sua Flórida natal, e tentar o concurso para fuzileira, mas entre um e outro esgar, o destino vai sendo-lhe generoso.

Workaholic convicta, quando detecta um erro óbvio no catálogo do leilão do lote de pinturas em acrílico (e não óleo) sobre madeira, Ana dribla a marcação cerrada de Suzette e Renee, as escudeiras fiéis da chefe, e comunica a falha a Claire Dupont, diretora da filial de Nova York de uma renomada casa de leilões internacional onde faz um estágio.

Depois de uma reunião interna em que demite um funcionário subalterno com classe diabólica, Claire promove sua trainee a terceira-assistente, abaixo das secretárias esnobes incorporadas com charme e toques de psicopatia por Rachel Matthews e Fola Evans-Akingbola, e vai no seu lugar a Londres, a fim de assessorá-la na listagem das novas obras em que a leiloeira está de olho, a coleção de uma atriz, viúva de um multimilionário russo, que inclui Van Goghs e Monets. Ana iria na classe econômica, bem longe de Suzette Renee e, claro, Claire, mas a simpática agente da companhia aérea vivida por Juliet Agnes consegue-lhe um assento na primeira classe — a atualização a que o título se refere —, e exatamente como se dá no filme de Baugh, um encontro casual define os acontecimentos dos próximos dias.

William DeLaroche, o homem que se senta ao seu lado — ainda recendendo ao suco de tomate que ela derrubara nele na sala VIP —, é rico, bonito, falante e, por natural, também aprecia arte moderna. Young cede todo o espaço necessário para que Mendes e Archie Renaux elaborem o casal romântico da história, até que vira a chave para a comédia de situações desencadeada por uma mentira branca da protagonista, inócua no começo, mas que acaba chegando até Claire.

Marisa Tomei encabeça esse núcleo sobranceira, até que Catherine, a tal viúva (e mãe de William), passa a ocupar as pequenas brechas que ainda faltavam. A diretora aproxima os tipos corporificados por Mendes e  Lena Olin da maneira mais orgânica que pode, e a exuberância de Olin oferece um contraste surpreendente em paralelo as entradas sempre demasiado aristocráticas da pseudovilã de Tomei, sobretudo se acompanhada do amigo Julian Marx, o pintor meio malandro de Anthony Head. E é justamente Catherine, essa fada anticonvencional, quem salva Ana Santos — cuja origem incerta é mencionada em mais de uma ocasião, o que tira muito do efeito da piada —, das garras da bruxa Claire. Com direito a príncipe encantado no final, o que atropela a lógica, mas conserva a poesia.


Filme: Upgrade: As Cores do Amor
Direção: Carlson Young
Ano: 2024
Gêneros: Comédia/Romance 
Nota: 8/10