Filme da Netflix aplaudido de pé no Festival de Cinema de Tribeca tem 99% de avaliações positivas Divulgação / Netflix

Filme da Netflix aplaudido de pé no Festival de Cinema de Tribeca tem 99% de avaliações positivas

Com o poder de legar ao público um trabalho de fôlego sobre diversidade cultural, choque de civilizações e a própria função do cinema de registrar este fenômeno de maneira abrangente, imparcial e, claro, conferindo-lhe aura de bom entretenimento, “Ya No Estoy Aqui”, cuja estreia já remonta a um pálido 2019, é um monumento fílmico à memória latina.

Na história, que conta com roteiro e direção do mexicano Fernando Frías de la Parra, o protagonista, um garoto colombiano de dezessete anos, não é nenhum personagem de Homero (928 a.C-898 a.C), mas também tem sua “Odisseia”. Ulises está em busca de sua própria jornada, uma trajetória à procura de autoconhecimento e descoberta do mundo, honra e afirmação de si mesmo.

Ulises Sampiero, como qualquer adolescente em Monterrey, nordeste do México, gosta de roupas largas, cabelo extravagante, penduricalhos, estética que, sob uma análise ligeira, remeteria aos rappers nova-iorquinos. No caso do personagem de Juan Daniel García Treviño — destaque absoluto em “Ya No Estoy Aqui”, dado sua performance assustadoramente espontânea —, o moleque é um autêntico emblema da cultura regional hispânico-latina. Ele sonha em tornar-se um expoente da Kolombia, um subtipo da cúmbia, ritmo do país sul-americano de mesma pronúncia que se aparta da origem graças a intervenções do mainstream. Ulises, como muitos garotos da sua idade, anda em companhia de amigos de gênio duvidoso, e aí é que está o problema.

Numa dessas, conhece criminosos de verdade, se mete em confusão com eles e sua única saída é imigrar, no bagageiro de uma van, para os Estados Unidos. A partir desse ponto de inflexão, De la Parra exibe uma outra faceta de seu anti-herói.

Ulises tem como único meio de subsistência dançar numa estação de metrô no Queens, bairro do lado oeste de Nova York, conhecido por abrigar imigrantes asiáticos, irlandeses, eslavos e, por óbvio, os latinos.

Uma das grandes conquistas do dançarino amador é se fazer notar por Lin (Xueming Angelina Chen, igualmente orgânica, é outra feliz surpresa), garota sino-americana que se interessa por sua figura exótica, algo sedutora, também ela uma intrusa no mundinho abafado da América, mas que não tem seus desejos correspondidos porque Ulises não fala inglês, e tampouco ela entende espanhol. Um amor impossível, ainda que Ulises esteja mais empenhado em garantir pouso na água-furtada da casa de Lin, que cobra pelo favor apenas uns instantes efêmeros de atenção.

O trabalho de Fernando Frías de la Parra é um portento de beleza e de originalidade com seus planos ora céleres, ora quase se arrastando, enquadramentos na maioria das vezes muito abertos, tudo pensado a fim de dar à cena a sensação de distância, de exclusão.

O efeito de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões olvidados do subcontinente pela perspectiva do oprimido, sem se permitirem contemporizações ao pensamento vitimista.

Ulises é brioso até a raiz do cabelo descolorido, mesmo quando reconhece a queda e se sujeita. O personagem balança entre a aura maldita e a do mocinho clássico, e esse é o modo como o diretor leva seu filme a partir de então.

O diretor não tem a intenção de realizar julgamentos, o que banalizaria o conflito. Ao escolher ressaltar o êxodo dramático do meio físico para o psicológico em “Ya No Estoy Aqui”, De la Parra evidencia a forma como Ulises vê sua própria realidade, melancólica e até cruel.

Obra de arte que, voluntariamente ou não, funde-se ao propósito de testamentar o problema sociológico por trás de seu enredo, o filme incumbe o público quanto a absolver ou condenar as atitudes delituosas do personagem central antes de sua conversão mandatória de vida.

Frise-se uma vez mais o total autocontrole de Treviño, que nunca resvala para o melodrama, mérito em igual proporção do diretor, por evidente — e esse é outro predicado ilustre da narrativa. A mudança a que Ulises se submete, forçada, mas necessária (e, por isso, assimilada logo), decerto é o que se mostra mais revelador em “Ya No Estoy Aqui”, uma história de sonhos. Mas de sonhos reais.


Filme: Ya No Estoy Aqui
Direção: Fernando Frías de la Parra
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Musical
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.