A cronologia não há de ser um problema incontornável, mas a leitura de “Todos os Nossos Ontens” calhou de ser anterior ao “Léxico Familiar”, representantes da escrita colorida da italiana Natalia Ginzburg. Pela ordem dos fatores, “Léxico Familiar” deveria ter tido a primazia do primeiro encontro. Lançado em 1958, ele antecede “Todos os Nossos Ontens” em exata meia década. Não se trata de uma linha evolutiva imprescindível para o sabor da descoberta. O sentido da viagem não altera a efusão do movimento.
Mas, assim como “Fado Alexandrino” supõe a expansão em canto coral da experiência individual e solitária de “Os Cus de Judas”, de António Lobo Antunes, o que se depreende da trajetória que une os pontos em Natalia Ginzburg é que “Léxico Familiar” e “Todos os Nossos Ontens” são imagens refletidas nos dois lados do mesmo espelho. Os personagens em suave tendência de reconhecimento na fantasia da escritora.
Em que pese o fato de que “Léxico Familiar” propõe como biografia o que em “Todos os Nossos Ontens” emerge com as qualidades de um romance. A autora fez questão de salientar que evitou o quanto pôde qualquer recurso narrativo que não fosse fiel à sua memória no primeiro livro dos dois. Ainda que o leitor desconfiado levante um pouco os olhos da página ao intuir que as lembranças podem ser frutos de uma imaginação irrefreável.
De concreto, ambos se desenrolam no mesmo período histórico, quando a Itália sob um regime nefasto estende as mãos para a Alemanha onipotente e sofre as consequências trágicas no ruidoso final da Segunda Grande Guerra. Dito assim, nada leva a crer na possibilidade de um texto solar e radiante. Não fosse Natalia Ginzburg uma exímia contadora de pequenas histórias do cotidiano dentro desse panorama retumbante.
O temor, presente, se imiscui nas dobras das reações de cada um diante dos desafios pessoais que insistem em parecer, muitas vezes, alheios aos acontecimentos que fazem o país tremer. Tudo entrelaçado e independente, correndo junto e em paralelo, atravessando a frente um do outro, com olhar atento aos inúmeros detalhes que se passam por dentro e ao redor. Cada testemunha voluntária e privilegiada decida se não se trata de literatura de primeira grandeza.
O determinante, ouso afirmar, é que Natalia Ginzburg é acima de tudo enternecedora, ao demonstrar um carinho pelo ser humano em seu ínfimo gestual que não se confunde, em nenhum momento, com o expediente passional dos medíocres, que não vão além da pieguice em estado bruto.