Mulheres adotam condutas delituosas pelos mais insondáveis motivos, e atribuir-lhes somente razões passionais, além de uma discriminação às avessas, parece reduzir meio artificiosamente demais uma questão delicada, catastrófica, que foi revelando-se um titânico desafio mundo afora. Nos anos 1920, o enredo de um amor clandestino que redunda em morte serviu de inspiração para o compositor americano John Kander, e “Chicago”, que está na Netflix, é ainda hoje a sátira definitiva a muito do que a sociedade contemporânea veio a se transformar ao longo do século passado.
O espetáculo viu as luzes no 46th Street Theatre em 3 de junho de 1975, com música de Kander, letras de Fred Ebb(1928-2004) e texto de Ebb e Bob Fosse (1927-1987), e foi encenado de uma tacada só por 936 vezes. O ano de 1996 marcou o revival do show na Broadway, onde segue em cartaz, sem nunca ter deixado de rodar o mundo. Embora o público leigo faça ideia do que se trata a obra máxima de Kander, Ebb e Fosse, todos ainda querem saber ao certo o que é que “Chicago” tem.
Em 2002, Rob Marshall topou a empreitada de transpor para o cinema — com as adaptações de praxe, por óbvio — a mágica do que se via na ribalta há quase três décadas até então, e conseguiu num só golpe firmar-se como um dos realizadores de Hollywood que melhor personificam a aura feérica e glamorosa das manifestações artísticas, reacendendo o interesse pelas histórias feitas de canto e dança, vítimas de um preconceito não de todo descabido.
Marshall volta um ano e dá fôlego renovado a “Moulin Rouge – Amor em Vermelho (2001)”, de Baz Luhrmann, produção que tem um nexo incontestável com seu filme. A loira angelical Roxie Hart dá cabo do amante que já não a procurava e convence o marido a bancar sua defesa (!); a morenaça belzebu Velma Kelly também dispõe de pendores homicidas e resolve a seu modo uma intrincada questão familiar.
Já Billy Flynn é o advogado mais encardido da Cidade dos Ventos, capaz de tirar Jesus do madeiro por (hoje) míseros cinco mil dólares. O roteiro, escrito por Ebb em pessoa e baseado em pretéritas anotações de Fosse, além contar com a expertise de Bill Condon e a sensibilidade de Maurine Dallas Watkins (1896-1969), faz pesar o tom sombrio da trama com a fotografia de Dion Beebe, sempre enaltecendo o vermelho-sangue e o preto, enquanto Renée Zellweger, Catherine Zeta-Jones e Richard Gere incorporam a decadência mesma da América pré-Crise de 1929, a era em que fama, seja lá em que contexto, passou a abrir portas.
O diretor faz questão de reviver o espírito de um tempo em que o politicamente incorreto vinha à tona em seu pior formato, qual seja, o caráter romântico da vida de delinquentes; a ridicularização da polícia, inepta de fato; o quarto poder exercido sem pejo por quem dominava os meandros da lei. Queen Latifah fecha o arco central na pele de Mama, a presidiária negra e homossexual que exige afeto em troca de proteção para as detentas Roxie e Velma. Uma pancada atrás da outra, com todo aquele jazz.
Filme: Chicago
Direção: Rob Marshall
Ano: 2002
Gêneros: Musical/Crime
Nota: 9/10