Num tempo doentiamente narcísico, em que o eu e os vários eus tornam-se o centro do universo — e muitas vezes são mesmo —, figuras como a de “Minha Mãe É uma Viagem”, que está na Netflix, parecem extraterrestres recém-chegados das profundezas da galáxia, aplicando outros códigos e tomando atitudes incompreensíveis e até inaceitáveis diante de assuntos para os quais os sabidos recomenda distanciamento e frieza.
O jeito como a protagonista reage ao se deparar com problemas que não são dela é, não se pode negar, bastante invasivo, mas a medida que o filme de Anne Fletcher se desenrola, fica claro que ela apenas responde ao forte estímulo que consegueabsorver, alimentando de modo inconsciente ou não uma excrescência que vai se derramar sobre ela em algum momento. Os roteiristas Jason Conzelman e Dan Fogelman falam de um tema que conhecem de perto, e sempre se espera que a mãe judia controladora de Barbra Streisand vá levar a pior mais cedo ou mais tarde.
O pulo do gato de Fletcher é fazê-la perceber seus excessos e tomar de volta as rédeas sobre a própria vida, sem a grande ruptura que se segue a esses episódios.
A Joyce Brewster de Streisand parece satisfeita com a própria vida, e isso quer dizer que está liberada para supervisionar com lupa a vida do filho, um químico que concluiu há algum tempo um mestrado na UCLA, na Califórnia, e agora peleja para vender um superdetergente orgânico à base de óleo de coco e molho de soja num mercado sem muita paciência para novidades ambientalmente corretas.
Andrew atravessa os Estados Unidos e viaja até Newark para se encontrar com Joyce, mas já no desembarque suspeita que esta não tenha sido uma boa ideia. A mãe parece mais eufórica do que de costume, acena com um entusiasmo meio pueril, grita, cobre o rebento de beijos e, em casa, não dispensa o jantar de frango com amigas em torno do filho, que preferia ir para a cama e recuperar-se do jet leg.
A diretora equilibra o foco da ação entre Joyce e Andrew com precisão cada vez maior, e Seth Rogenmostra-se um parceiro à altura de Streisand, ainda no auge da carreira malgrado suas escolhas profissionais nem sempre tenham sido capazes de arrancar-lhe algum frescor.
O argumento étnico-religioso de Joyce e do filho nunca é usado por Fletcher, mas a essência da mulher solitária, viúva há mais de duas décadas, aposentada (ou recebendo a pensão do finado marido, ninguém jamais sabe), está lá, da mesma maneira que em “Funny Girl – Uma Garota Genial” (1968), dirigido por William Wyler (1902-1981), ou “Nasce uma Estrela” (1976), de Frank Pierson (1925-2012). A melancolia fica bem para Streisand e seus miúdos olhos azuis, sempre vislumbrando possibilidades em mulheres quase comuns.
Do segundo ato em diante, o filme envereda por uma espécie de acerto de contas entre mãe e filho, que inventa uma entrevista em San Francisco na intenção de fazer Joyce rever Andrew Margolis, um amor do passado, e deixá-lo em paz — embora também se especule quanto a uma chance, ainda que remota, de Margolis o ajudar com suas pretensões empresariais.
A falsa coincidência dos nomes é explicada ainda na introdução, e no desfecho, ao cabo de situações ora absurdas, ora destacadamente enternecedoras, o arco se fecha com outro concurso de interseções entre os Margolis e os Brewster, momento em que a enxuta participação de Adam Scott e Ari Graynorcorrobora que esta é, de fato, uma ode ao manjadíssimo carpe diem de Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), sem tempo a perder com bagatelas de dias mortos.
Filme: Minha Mãe É uma Viagem
Direção: Anne Fletcher
Ano: 2012
Gênero: Comédia/Road movie/Drama
Nota: 8/10