Amor nenhum cabe em gaiola Gaiola

Amor nenhum cabe em gaiola

Meu pai sempre dizia que, para conhecer com quem vamos nos casar, é preciso primeiro separar. Isso mesmo. “A gente só conhece o outro depois que se separa, minha filha.” É… A separação deveria ser o pretérito imperfeito do matrimônio. Meu pai não tinha diploma, não falava outras línguas, não era culto. Mas ele possuía algo para o qual, naquele tempo, eu não dava a menor importância. Meu pai era um homem experiente. E experiência supera, até mesmo, a sabedoria. A duras penas aprendi que a vivência ensina mais do que qualquer livro ou professor.

Na época, eu não tinha maturidade para entender o peso dessa frase. O peso que, mais adiante, foi sentido nas costas, no peito, nas pernas e, sobretudo, na aliança. Aquela prova de amor havia se transformado numa coleira, que mantinha dois prisioneiros atados um ao outro. Não existia distância física capaz de desatá-los, tampouco proximidade que pudesse uni-los novamente.

Eu também não tinha a mínima noção sobre as leis, inclusive, aquela que nos impõe ser felizes para sempre ― ainda que de mentirinha. Tempos depois eu li que alguém citou três regras para viver bem. São elas: não prometer nada quando estiver feliz, não responder nada quando estiver irritado e não decidir nada quando estiver triste. Seguramente uma alma calejada tentou nos alertar. Entretanto, nós, estupidamente apaixonados e presunçosos de ter a posse de um amor maioral, decidimos não fazer caso e fazer tudo ao contrário. Resumindo: prometemos a felicidade conjugada no plural e parcelada a perder de vista. Só que, no meio do caminho, havia uma pedra, um buraco, arame farpado, bicho papão.

Quando juntos, a culpa é sempre do outro, das suas falhas, suas manias, suas implicâncias. Quando separados, assumimos a culpa por não ter conseguido aguentar as chateações com resiliência. A frustração por não superar as mágoas é um empurrão para que a gente se sinta inapto para manter a relação. Parece que nunca mais seremos capazes de amar uma nova pessoa, de amar a nós mesmos. A possibilidade de ser feliz novamente é nula. Nos sentimos absolutamente incompetentes, falidos e murchos. A sensação é de que o mundo acabou, mas você ainda continua vivo. Só conhecemos o nosso parceiro quando já não existe mais parceria. A outra face da moeda, a periferia, o submundo encardido e escondido por tanto tempo. Dois mestres em disfarces, dois cegos, dois completos desconhecidos. Agora tudo faz sentido, meu pai.

Primeiro surge a sensação de abandono, de rejeição. A abstinência e a dependência do outro funcionam como causa e efeito de um processo de solidão escolhida e, ao mesmo tempo, forçada. Os sentimentos se embaralham em revolta e raiva, autopiedade e fragilidade. Os costumes se desacostumando pouco a pouco, a rotina quebrada, o coração partido. Se ainda há resquícios de amor nos porões da alma, não há remédio senão deixar que ele parta, e torcer para que ele leve o melhor de você. Porque ninguém merece ser mendigo de amor. Agora, se não sobrou nem poeira de bons sentimentos, tenha a dignidade de sair pela porta da frente.

Até para se levantar é preciso amor. Amor pelos que ficaram, pelos que nos amam, pelos nossos filhos e por nós mesmos. Só o amor consegue superar a dor do que um dia foi e do que não mais será. É preciso amor para poder renascer e esperança para um dia voltar a florir.

Karen Curi

é jornalista.