Cristina Pavão tinha o rabo mais bonito da faculdade. Isso ninguém podia negar. Antes de mais nada, gostaria de me apresentar. O meu nome é Alisson. Naquela época, me chamavam de Alisson, O Animal. Por que O Animal? Porque eu tinha o hábito de colocar apelidos jocosos nas pessoas, fossem elas alunos, professores ou funcionários. De maneira geral, seguia a minha intuição ao utilizar cognomes de cunho animalesco como José Galinha, Beth Baleia, Osvaldo Girafa, Deivid Ganso, Homero Jaboti, Rogério Minhoca, Saulo Cachorro e outros bichos. No grêmio estudantil, eu fazia um enorme sucesso em termos de humor e de ódio. A maior parte dos estudantes não dava a mínima para os apelidos, mas, alguns os rejeitavam e, até mesmo, sofriam com eles. Eu não sabia. Eu juro que não sabia.
Eu era, com toda certeza, merecedor da bizarra alcunha de Animal, um termo que se encaixava perfeitamente no perfil de jovem branco, besta e mimado, proveniente duma família da classe média. Poderia ter sido pior, eu admito. Lembro-me, por exemplo, que alguns anos antes, quando ainda cursava o Ensino Fundamental, fundamentei o despautério ao batizar Valéria Vasques como Valéria Vaca. Cometi esse exagero por causa das suas tetas monumentais, incomuns, generosas, precocemente crescidas em decorrência da disparatada ejeção de hormônios femininos na corrente sanguínea, a partir dos ovários. Hoje, eu sei que os órgãos responsáveis pela produção de hormônios femininos são os ovários, não o útero. Vivendo e aprendendo. Eu demorei a aprender. Não sei se aprendi a viver.
Perpassando pelos primórdios do Ensino Médio, inspirado nas aulas de Botânica que eu detestava numa escala impressionante, tive o tremendo tirocínio, a inspiração satânica para apelidar o Gérson Gonçalves como Gérson Gavinha, em decorrência dos cabelos crespos, encaracolados. Rita Preta recebeu o apelido porque era preta e ponto final. Sílvio Privada porque tinha mau hálito. Os maus hábitos não paravam por aí. Cristiane Farmácia porque era umbandista. Dário Sinaleiro porque piscava os olhos de forma frenética enquanto falava. Além de tudo, era gago. Augusto Menina ganhou o epíteto porque era um menino com trejeitos efeminados e, aquilo ninguém na escola podia admitir. Menina abandonou o ano letivo pela metade. Nunca mais tivemos notícias dele. Deve ter mudado de cidade. Ou de sexo. Desistido de estudar. Ou de existir. Pode parece um exagero, eu sei, mas, medidas drásticas assim aconteciam. E continuam acontecendo. Sofrimento não se mede com régua, ainda mais, quando se é muito jovem e imaturo.
Eu era um idiota. No duro. Não usava nem perto dos tais 10% da minha cabeça animal, como cantava Raul Seixas. Nas décadas de 1970 e de 1980, poucos sabiam o que significava a palavra bullying. Ninguém usava esse termo no Brasil. Aliás, estudar inglês era um verdadeiro pé no saco. Bullying era um vernáculo desconhecido, ainda mais quando se vivia no interior do país, uma região culturalmente atrasada, cuja economia era eminentemente agropastoril. Sem que sequer eu supusesse, sentia um orgulho danado da própria estupidez. Não media as consequências dos atos hostis disfarçados sob o verniz do divertimento e da pilhéria.
O tempo. Ah… O tempo chega para todos, a não ser que se morra miseravelmente antes de se tornar um velho. Com o advento da maturidade, a maior parte das pessoas acaba melhorando um bocado, progredindo emocionalmente. Nem sempre é assim, eu sei, mas, regra geral, a boçalidade no seu estado de arte é primazia dos mais jovens, os que pensam que sabem tudo. Marília tentou se matar. Marília é o nome de minha filha. Ela tem quinze anos de idade e tentou se matar tomando comprimidos. Passa bem a garotinha, graças a Deus. Estamos agora na antessala. Enquanto aguardamos ser chamados pelo diretor da escola para uma reunião com a coordenadora pedagógica, com os professores e com outros pais de alunos, rememoro um passado distante quando eu fui um jovem estudante. Admito que, aos trancos e barrancos, a minha geração sobreviveu à falta de limites, ao assédio moral e à humilhação coletiva dos mais frágeis. Muitas vezes, a avacalhação visava a mais do que a mera comicidade. Fazia-se o uso dos apelidos para ferir determinadas pessoas no seu ponto fraco. Nada mais covarde.
Eu brigava na escola. Eu batia e apanhava na escola. Devia ter apanhado mais. Hoje, quem me bate é a vida. Na cara. Uma surra didática, ainda mais doída, porque atinge aqueles que a gente mais ama. Chega de tanto mi-mi-mi. Os tempos agora são outros. O mundo ficou mais chato. Mas, ficou menos cruel também, em certa medida. O que não deixa de ser um avanço até mesmo para um sujeito que tinha fama de animal.