Com Michael Caine, filme perfeito para amantes de livros acaba de chegar na Netflix Divulgação / Bright White Light

Com Michael Caine, filme perfeito para amantes de livros acaba de chegar na Netflix

Juventude sem sucesso e sucesso sem juventude são ideias cada vez mais execradas. Se adicionarmos à equação a variável das tais interações midiáticas, isto é, quanto mais cedo alguém se descobre apto a integrar o circo dos horrores que se tornou a cultura pop — que nunca sobressaiu pela profundidade, diga-se —, mais se convence de que, sozinho, está reinventando a roda e erguendo do chão um mundo novo, perfeito, refutando tudo o que já possa ter existido.

Para essas pessoas, um homem das letras distante do cenário editorial há algum tempo numa casa em ruínas da qual está para ser despejado é o símbolo terminante do malogro e da inutilidade da sofisticação intelectual, e “Best Sellers – A Última Turnê”, que está na Netflix, bate com força nessa tecla, mormente depois de apresentado o conflito principal. A essa figura quixotesca, a estreante Lina Roesslerjunta uma editora obstinada, cujo destino se cruza com o dele, e desse relacionamento compulsório, pleno de lances desagradáveis e quase trágicos, emerge a história de uma amizade sólida como o talento, o redentor dos dois.

Talvez não existisse intérprete mais adequado que Michael Caine para dar vida a um tipo como este. Caine é o eixo em torno do qual gira o roteiro de Anthony Grieco, e contando então 88 anos, o ator estava ainda longe de acusar o esgotamento de quase oito décadas (!) empenhadas à arte dramática, a se tomar sua participação inaugural diante das câmeras em “MorningDeparture” (1946), de Harold Clayton (1902-1971).

Aqui, o veterano encarna Harris Shaw, um pré-boomer nada seduzido pelas maravilhas da civilização millennial, muito confortável diante de sua Remingtonverde-musgo na sala invadida por ondas de livros que parecem se multiplicar ao passo que esvazia garrafas de uísque e queima charutos cubanos na presença de Hemmy, o gato laranja assim batizado em homenagem àquele outro alcóolatra genial. Ele não fazia ideia de que poderia ter seu sossego interrompido, e por uma legítima representante da indústria que hoje despreza.

Seu universo abafado e cinzento, palpável na certeza da fotografia de Claudine Sauvé, recebe uma lufada de ar fresco e luz matinal no momento em que Lucy Stanbridge, a herdeira de um grupo editorial que não sai do vermelho desde a morte do fundador, bate a sua porta, ou melhor, entra sem convite mesmo, e cobra-lhe uma dívida.

Aubrey Plaza elabora com Caine uma tabelinha de encher os olhos. Lucy é a única que enfrenta o antigo colaborador de seu pai de igual para igual, mesmo que saiba que a qualquer momento pode ser alvejada sem prévio aviso, literalmente. Uma pequena confusão no texto não é capaz de esclarecer se os 25 mil dólares pagos a Shaw pelo pai da personagem de Plaza eram de fato um adiantamento pelo novo romance que deveria submeter a sua apreciação — e restou esquecido — ou se, ao contrário, se tratava de algum outro volume já entregue.

Esse possível deslize, contudo, não implica nenhum grande prejuízo, e o velho acaba cedendo: aceita retomar a carreira com um certo “O Futuro é Pornográfico”. Só não esperava que também seria compelido a sair num catastrófico giro por bibocas da América profunda, uma balela. E esse vocábulo tão peculiar vira sua palavra de ordem, até virar o jogo.

Num relato talvez íntimo, que termina numa dedicatória ao pai, Roessler disseca as relações entre dois estranhos que se descobrem muito mais semelhantes do que gostariam, porém o pano de fundo da ligeireza da ascensão de pseudocelebridades numa contextura falsamente libertária não passa em branco.
A diretora fala de todas essas coisas com uma naturalidade que espanta, dando a seu filme um conclusão agridoce, de morte e recomeço. Tudo de que a humanidade de não tem suportado nem ouvir falar.


Filme: Best Sellers – A Última Turnê
Direção: Lina Roessler
Ano: 2021
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10