Um mapa das regiões literárias do Brasil

Um mapa das regiões literárias do Brasil

A divisão geográfica da cultura andou fora de moda por uns tempos. Nas últimas três décadas, a globalização fez muita gente acreditar na falta de importância da nação e de um país na produção artística. A ficção brasileira contemporânea, por exemplo, chegou ao ponto de achar que ela mesma brotava de um não-lugar, um lugar nenhum e sem pátria. Deu com os burros n’água porque a literatura do mundo inteiro valoriza o espaço. A paisagem, a fala local, ainda contam e narram muito.

Uma das provocações recentes partiu do crítico Luís Augusto Fischer, no livro “Duas Formações, Uma História: Das Ideias Fora do Lugar ao Perspectivismo Ameríndio” (2021). Ele propõe a existência de duas grandes regiões literárias no Brasil. A primeira seria a da “plantation”, a grande fazenda com a escravidão, voltada ao exterior, que moveu a capital Rio de Janeiro e teve expressão máxima em Machado de Assis. A outra região é o interior, o sertão do mercado interno, apresentado pela obra de Guimarães Rosa.

Duas Formações, Uma História: Das Ideias Fora do Lugar ao Perspectivismo Ameríndio
Duas Formações, Uma História, de Augusto Fischer (Arquipélago Editorial, 400 páginas)

O crítico e escritor Augusto Massi também arriscou uma divisão espacial da literatura brasileira, no posfácio da coletânea “Região Ficções Etc.” (2012), de Zulmira Ribeiro Tavares. Segundo ele, é possível enxergar a existência de um romance paulista que vai de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado, até Lygia Fagundes Telles, Raduan Nassar e João Antônio. Também se pode mapear, diz Massi, uma ficção de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro.

Outra iniciativa teve um aspecto coletivo e originalíssimo. Trata-se do projeto “Atlas das representações literárias do Brasil”, de quatro volumes até agora, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já foram mapeados o Brasil Meridional, numa radiografia do sul literário e sua topografia. Dois livros focalizam os sertões, o imenso interior brasileiro. Por último, há o mapa da região costeira, de norte a sul, que é a faixa litorânea com uma diversidade impressionante de obras e autores.

Na linha de tais iniciativas, pode-se pensar em outros recortes espaciais e culturais da literatura no Brasil. É factível imaginar oito regiões espalhadas pelo país ao longo dos últimos dois séculos. Essa classificação vai mais além da cisão clássica entre campo e cidade, bem explorada no livro de Raymond Williams sobre a literatura inglesa. Uma pequena localidade de hoje no Brasil reflete os movimentos do sistema-mundo e está interligada a uma infinidade de questões locais, nacionais e globais.

Caso exemplar é o romance “Torto Arado” (2019), de Itamar Vieira Jr, que se passa no interior da Bahia, numa comunidade quilombola. A narrativa do livro transborda os limites geográficos da vida dos personagens, tocando em aspectos como a ancestralidade africana (a cultura de outro continente) e a herança negra do litoral baiano. Ocorre assim uma fusão de perspectivas que o autor avançou ainda mais nas obras seguintes: “Doramar ou a Odisseia” (2021) e “Salvar o Fogo” (2023).  

Sertão-mar

O primeiro recorte possível é a faixa costeira do Brasil, com três regiões literárias de grande força. As interpretações clássicas da sociedade brasileira nasceram justamente na tradição do litoral, a primeira ser ocupada pela colonização portuguesa. É ali que se desenvolve o sistema de “plantation”, a propriedade voltada para exportação e explicada pelo historiador Caio Prado Jr. A cana de açúcar, o café, as fazendas, os escravos e as cidades vão se constituir a partir das relações no ambiente rural.

A primeira do nosso mapa pode ser vista na capital Rio de Janeiro, que se torna no século 19 o ponto cosmopolita da cultura brasileira. Sua expressão maior está na obra de Machado de Assis, que decifra as formas de vida e de pensar, as contradições dos sonhos liberais do regime escravocrata. Aquele Rio que desmontava a cabeça dos personagens e os levava à loucura (“Quincas Borba”, de 1891) ou a cidade em transição, como a trama de “Esaú e Jacó” (1904).  

À Margem da História
À Margem da História, de Euclides da Cunha (Editora Unesp, 421 páginas)

Também são reveladores da capital cosmopolita os livros de Lima Barreto e Marques Rabelo, com histórias e crônicas da vida cotidiana. A cidade que vai se transfigurando, perde relevância durante o século 20 e desemboca na Macabéa de “A Hora da Estrela” (1977), Clarice Lispector, e nos contos de horror urbano de Rubem Fonseca. O fim de linha do lugar tão cantado e louvado no passado aparece em “Cidade de Deus” (1997), de Paulo Lins, e nos romances e contos recentes de Chico Buarque.  

A segunda região do litoral é um berço histórico do Brasil. Trata-se da mítica Bahia, que começou a ser poetizada por Gregório de Matos no século 17. E ganha corpo e alma com a linhagem de escritores: Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro e Itamar Vieira Jr. Aparecem em suas obras o país e uma formação cultural que se equilibra, nunca se rompe por inteiro. Uma escrita que dá ossatura para a maneira como os brasileiros se veem no espelho do mundo. A imagem é positiva, contraditória, e com vitalidade.

A “alma nacional” se constituiu ainda na terceira região da costa, o estado de Pernambuco e com sua zona da mata. As narrativas de Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre e José Lins do Rego criaram um argumento original para tratar da paisagem e dos seres humanos que viveram ali. A escravidão pernambucana teria quase o doce da cana de açúcar, era violenta, porém seria distante das atrocidades do sudeste. Esse mundo ambivalente e criativo deixou traços, por exemplo, no cinema de Kleber Mendonça Filho. 

Um desdobramento do universo pernambucano foi o chamado romance de 30 que revelou a “consciência do atraso” do país, segundo Antonio Candido. Mesmo sendo de outros estados, autores como Graciliano Ramos e Rachel Queiroz foram fundamentais para moldar a imagem do sertão nordestino, com a seca, os homens ríspidos. Esses traços alimentaram a produção do Cinema Novo (Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos) e se transformaram numa das mais fortes representações do Brasil.

Moderno e arcaico, o sertão nordestino teve vida prolongada nas obras mais recentes de Socorro Acioli, Ronaldo Correia de Brito e Francisco Dantas. A realidade se transfigura, mas carrega traços do passado doloroso. Toda essa linhagem de autores e autoras tem dívida com o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que acreditava na forma de pensar o país por meio de suas regiões. Após narrar a Guerra de Canudos no Nordeste, ele viajou pelo Norte e deixou inacabado o livro “À Margem da História”.

Coração do país

Ao se afastar do litoral, das faixas fundadoras do país, o leitor faz uma viagem por um imenso espaço. Um interior variado que assusta pela natureza selvagem (cerrado, floresta tropical) e pelo isolamento do mundo. Parece um bolsão que pôde manter intactos alguns traços próprios – e nem sempre positivos. É a terra dos desbravadores, sem a lei dos homens ditos civilizados. Mas tais civilizados eram beneficiários da terra de ninguém — como nos Estados Unidos, ela estava a oeste de tudo.

O Menino Sem Passado
O Menino Sem Passado, de Silviano Santiago (Companhia das Letras,  464 páginas)

Nesse mapa, o sertão é a quarta região literária do país, tendo em Guimarães Rosa seu grande fabulador. Há outros prosadores de qualidade, como Bernardo Élis e Afonso Arinos (“Pelo Sertão”, de 1898). Trata-se de um espaço que reúne o norte e oeste de Minas Gerais, o leste de Goiás, o centro da Bahia, as margens do rio São Francisco. É o interior que, no século 20, se expandiu pelos dois Mato Grosso, Tocantins e oeste dos estados nordestinos. Um espaço de vaqueiros pobres, fazendeiros e pequenas cidades.

O desafio da literatura contemporânea é dar conta do grande sertão brasileiro que hoje é a parte mais conectada ao mundo, pela economia, e mais influente no mercado nacional da cultura. O estilo sertanejo que se tornou uma forma de vida e de encarar a realidade domina a indústria cultural, mas revela um espírito sombrio na relação ao restante do país. Emerge um componente religioso, conservador, impetuoso. Qual será o autor de ficção disposto a decifrar esse novo claro enigma?

A quinta região literária é, na verdade, um conjunto de pontos: as pequenas cidades do interior. Um universo provinciano, isolado do mundo, e barroco por conta da religiosidade impregnada. A cultura do barroco está no aspecto enigmático dos silêncios que definem um milhão de coisas e escodem outro milhão. Lugares que se modernizam, mas não deixam de lado a herança rural. Com a ascensão do sertanejo nos últimos anos, essa região disputa hoje a hegemonia cultural e política do país.

O espírito da pequena cidade está na ficção de Autran Dourado, nas memórias de Pedro Nava, nos tormentos de Lúcio Cardoso, na poesia de Carlos Drummond de Andrade, nas histórias de Otto Lara Resende, nos contos de José J. Veiga e até nos romances de Cyro dos Anjos e Fernando Sabino. A região ressurge no fenômeno pop de Carla Madeira, com o melodrama “Tudo é Rio” (2014). E aparece nas memórias impressionantes de Silviano Santiago (“O Menino Sem Passado”, de 2021).

Extremos: norte e sul

Quem historicamente está na faixa litorânea e comandou os rumos da cultura brasileira, tem dificuldade ainda maior de entender os enigmas que vêm das partes norte e sul do país. Pode ter até uma razão histórica para a baixa compreensão, pois essas duas regiões ficaram a oeste no Tratado de Tordesilhas. Seriam outras partes indomáveis, seja por conta da natureza (a floresta amazônica), seja pelas pessoas (os gaúchos e brasileiros vizinhos dos países de colonização espanhola).

Boca da Amazônia
Boca do Amazonas: Sociedade e Cultura em Dalcídio Jurandir, de Willi Bolle (Sesc, 352 páginas)

A Amazônia pode ser considerada a sexta região literária. Há pouco tempo, Willi Bolle revelou de forma brilhante a obra do paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979) com seu estudo “Boca da Amazônia” (2020). Segundo o crítico, o ciclo de dez romances do autor construiu uma história cultural a partir do Rio Amazonas e, principalmente, mergulhou na vida popular da capital paraense, Belém. Todo um universo brota da imaginação de Dalcídio Jurandir, ao longo de vários momentos do século 20. 

A imensidão amazônica não é só geográfica, mas também histórica. Ninguém foi melhor e mais capacitado para narrar a região como Márcio Souza. Seus livros assombram pela qualidade da escrita e riqueza de histórias, como se vê na tetralogia sobre o Grão Pará e Rio Negro (o antigo nome da região Norte). Um outro olhar sobre Amazônia aparece na obra de Milton Hatoum, que mescla em seus primeiros romances a cultura local (de forte base indígena) e a herança da imigração libanesa em Manaus.

No extremo oposto da Amazônia, está a sétima região literária do país. Um espaço que vai do sul dos pampas gaúchos, na fronteira com Argentina e Uruguai, e chega ao norte do Paraná. A ficção que surge nesse espaço parece ter gosto por épicos: as histórias de aventuras e desventuras de Erico Verissimo, Tabajara Ruas, Luiz Antônio Assis Brasil e Domingos Pellegrini.  A terra tem valor que transcende a questão material e compõe a formação imaginativa daquela parte do Brasil.

Se o campo tem presença acentuada nas obras dos autores citados no parágrafo anterior, a cidade assume papel central no trabalho de outros escritores. Sem sair do sul do país, a vida urbana é central para os romances, contos e novelas de Dyonélio Machado, João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu, Cristovão Tezza e Daniel Galera. A paisagem local está em seus livros, mas as questões já passam a ser as da grande metrópole, com um tipo colonização diferente de outras regiões, mas ainda assim bem brasileira. 

Cidades inviáveis

A oitava e última região desse mapa literário também são pontos dispersos. Trata-se das metrópoles globais do Brasil, com suas conexões cosmopolitas e falta das expectativas por um futuro promissor. Elas são narradas, por exemplo, na obra de Ignácio Loyola de Brandão (“Não Verás País Nenhum”), Reinaldo Moraes (“Pornopopeia”), Paulo Lins (“Cidade de Deus”), Patrícia Melo (“O Matador”, “Mundo Perdido”), Beatriz Bracher (“Anatomia do Paraíso”) e Ferréz (“Capão Pecado”).

Anatomia do Paraíso
Anatomia do Paraíso, de Beatriz Bracher (Editora 34,  328 páginas)

A metrópole brasileira é um prato cheio para ficcionistas que apreciam as distopias contemporâneas. Crime, poluição, sofrimento humano, miséria, segregação racial, nada fica de pé em termos de esperança. A utopia positiva passa longe. É a ficção em negativo. Essa região vem ganhando até narradores que invadem outras praias e trazem para literatura brasileira contemporânea a estética do afrofuturismo, como Ale Santos em “O Último Ancestral” (2021) e “A Malta Indomável” (2023).

A pergunta é se as regiões literárias descritas podem se desdobrar em outras e mais outras. Uma das possibilidades ousadas será a leitura da produção brasileira em conexão com a África, sobretudo se trouxer autores e autoras de língua portuguesa de Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau. Na linha do que defende o historiador Luiz Felipe de Alencastro, podemos enxergar a formação do Brasil nas rotas históricas de comércio e culturais do Atlântico Sul — e daí nasceria uma nona região.