O centro da cidade sempre reservava surpresas aos transeuntes. Um cara vendendo um rim. Um renal crônico a mendigar no semáforo. Um viciado a pedir um fósforo. Rastros de bosta humana no passeio público. Seres humanos particulares. Um casal de caramelos engatado pelas genitálias. Um pastor com os sovacos suados. Um cossaco a praticar malabares. Lugares inusitados que serviam iguarias incríveis, como era o caso da Lanchonete da Tia Nair.
A lanchonete funcionava há décadas no centro da capital, na esquina da Pegasus com a Caralho-de-Asas. Ivana conhecera a charmosa birosca, por acaso, ao caminhar pelas imediações em busca de uma cartomante, de um michê, de um tal sujeito que consertava relógios e comprava cordões de ouro sob pagamento à vista. Apesar de tantas opções de bolos, tortas e outros quitandas saborosas, Ivana pedia sempre a mesma coisa: pão francês moreninho com generosas camadas de manteiga e de mozarela, prensado na chapa, acompanhado de uma xícara grande de café coado sem açúcar.
De tão doce, Tia Nair faltava açucarar o coração da clientela. Era uma senhorinha miúda adentrada na oitava década que gostava de zanzar pelo salão para cumprimentar a freguesia e pesquisar a quantas andava a qualidade dos alimentos e do atendimento. De tanto frequentar o local, Ivana, como a maior parte das pessoas, acabou se tornando, de certa forma, íntima de Tia Nair. A velhota já sabia, por exemplo, que Ivana não tivera filhos, era católica praticante, praticava tiro no prato, dava aulas de patologia forense na faculdade de odontologia e era brigada com a família inteira. Só poupou uma cunhada budista que servia como uma espécie de interlocutora, uma parente passiva que se sujeitava ao patético papel de leva-e-traz dos assuntos indispensáveis entre Ivana e os inúmeros desafetos familiares. Há poucos meses, ela fora informada pela cunhada do falecimento de pai com quem não conversava fazia mais de duas décadas. Ao contrário do que todos esperavam, compareceu ao funeral trajando um modelinho preto disparatado que rescendia naftalina. Nada mau para uma criatura que possuía o dom de tirar qualquer pessoa do sério.
Certo dia, num comportamento absolutamente fora de convencional, Tia Nair puxou uma cadeira e foi se sentar onde Ivana degustava o tradicional sanduíche de queijo de todas as manhãs.
— Bom dia. Bom dia. Bom dia… — cumprimentou quase a cantarolar. Como está esse lanchinho?
— Sensacional, tia. Deus proteja o negócio de vocês.
— Amém. Deus é grande.
— O maior de todos.
— Posso te fazer uma pergunta diferente?
Ivana sorriu assentindo.
— Sim. Claro. Vá em frente, tia.
— A sua mãe ainda é viva?
— Hein? Como assim?
— A sua mãezinha. Ela ainda vive?
— Sim. Por quê?
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
— Para sempre seja louvado. Por que essa pergunta agora, tia Nair?
— Pressentimento. Da próxima vez que você for a sua casa, apesar de não nos conhecermos, diga para ela que eu mandei um abraço bem gostoso. Daí, olhe direto nos olhos dela e fale mamãe eu te amo.
Ivana parou de mastigar o sanduba e ruminou por alguns segundos aquelas palavras assustadoras. Tossiu com uma casquinha de pão engastada na traqueia.
— A senhora não devia se meter dessa forma na vida dos outros, Dona Nair.
A velha comerciante tomou um susto, como se tivesse queimado o punho na borda da fritadeira.
— Mamãe está morta.
— Perdão. Perdão, Ivana. Meus sinceros pêsames. Eu julguei ter ouvido que a sua mãe estivesse viva.
— Tecnicamente, sim. Está viva. Mas, é como se não estivesse. Se é que me entende.
— Sinto muito. Eu não entendo.
— Pelo visto, a senhora não sente lá grandes coisas. E não entende nada sobre a vida também. Que droga de estabelecimento é esse, afinal? Saiba que a senhora está me constrangendo, pode acreditar. Uma mulher da sua idade. Quem diria. Devia se envergonhar por isso, criatura.
— Sinto muito, minha querida.
— Querida é o cacete. A senhora estragou o meu dia. Inferno. Que audácia. Sangue do cordeiro.
— Pelo amor de Deus, Ivana. Não foi essa a intenção.
— Era só o que faltava. Uma completa estranha se metendo na vida dos outros. Que mundo é esse, Senhor. Vai se foder, Dona Nair. Diabo de mulher enxerida.
Ivana se levantou deixando o lanche pela metade. Catou os pertences. Atirou uma nota de vinte no peito da moça do caixa. E nunca mais deu as caras por ali. Sem propósito, Tia Nair tinha perdido uma cliente assídua. E Ivana tinha arranjado outro inimigo oculto contra o qual digladiar nas noites longas, silentes e mal dormidas que tornavam o mundo um lugar a cada dia mais terrível de se viver.