O filme que Al Pacino considera sua melhor atuação no cinema está na Netflix Divulgação / TriStar Pictures

O filme que Al Pacino considera sua melhor atuação no cinema está na Netflix

Organizações criminosas só ganham a aura de glamour que resiste ao tempo porque seus integrantes, donos de um sobrenatural talento para a dourar a própria história, encontram ampla guarida junto à imprensa, à academia, aos políticos e mesmo ao Judiciário quanto a separar o que interessa do que deve permanecer embaixo do tapete, daí resultando a guerra de versões que tanto calham a estes dias estranhos que vivemos.

Filmes como “Donnie Brasco”, na Netflix, no entanto, mantêm acesa a chama de, em algum momento e em terras para muito além da América, o crime organizado ser posto em seu lugar devido, isto é, policiais equilibrados — que não têm de necessariamente abdicar da paixão — vendo como uma demanda de honra pessoal aferrolhar os representantes da alta cúpula dos narcocartéis; das quadrilhas de distribuição de serviços que o Estado não supre; dos bandos que vivem de extorquir e sangrar comerciantes amedrontados, que acabam se cansando de nadar contra a maré.

Versátil, aqui Mike Newell desdobra faces de didatismo tão insuspeito quanto revelador sobre como opera a máfia nos Estados Unidos, com espaço para romanceações, decerto, mas primando pela verossimilhança. Newell parte da adaptação do roteiro de Paul Attanasio — por sua vez o ajuste fílmico do livro homônimo de Joseph Dominick Pistone, levado à público em 1978 —, tentando chegar à mina de segredos que foi a jornada do autor, um agente especial do FBI cuja dedicação ao ofício implicou uma legítima metamorfose.

O diretor abre os bastidores do submundo com fotos em preto e branco, coloridas pela trilha de Patrick Doyle, até que a câmera estaciona diante de uma mesa de bar na qual um grupo de homens de reputação questionável discutem acerca da superioridade do Lincoln sobre o Cadillac. É novembro de 1978, uma época particularmente confusa na história americana, de falsos profetas e suicídios em massa, e o debate se encerra quando alguém lembra que a Mercedes é mais bonita e mais segura que os dois.

No balcão, Donnie Brasco, a alcunha usada por Pistone, ouve o que é dito sem dificuldade, sabendo exatamente quem são aquelas pessoas e aguardando o momento oportuno para dar o bote. Munido da pele camaleônica que o caracteriza desde sempre, Johnny Depp absorve essa urgência de girar rápido a chave do temperamento de seu anti-herói, e de predador Brasco torna-se um coelhinho pronto para ser devorado por Benjamin Ruggiero (1926-1994), o mandachuva da área. Lefty, um dos codinomes pelos quais também é conhecido — os outros variam do jocoso ao desabridamente pornográfico —, mostra-lhe um anel com um brilhante tão majestoso quanto falso, análise que o espião lhe transmite a seco.

Um recontro breve os leva até a fonte da desditosa aquisição, o dono de um inferninho em Staten Island; pela primeira vez, segundo ele mesmo, o veterano é feito de trouxa no meio da bandidagem, e agora deve a restauração de sua honra ao novo colega. Lefty, na verdade, não passa de um pobre-diabo, como fica cada vez mais óbvio no jargão propositadamente carregado do inglês macarrônico de Al Pacino, cuja habilidade em submeter seu antagonista a toda sorte de ultraje assombra.

Aos poucos, é ele quem vai se transformando, de Mike Corleone a Travis Bickle, mais e mais acuado, e o diretor tira disso todo o proveito que consegue, tratando de reduzir a pó a figura pretensamente máscula e invejável do vilão, até que sintamo-lhe, com justiça, uma pena embaraçosa. Lefty parece estar morrendo de um câncer, um dos filhos entra e sai de overdoses e Dominick Napolitano (1930-1981), o Sonny Black, interpretado por Michael Madsen, verdadeiro poderoso chefão aqui, não perde a chance de lembrá-lo de sua insignificância.

Ao longo dessas cenas, o britânico Newell deixa bastante claro o que vem a ser o longa. Melodrama involuntário das fraquezas do malandro ianque, “Donnie Brasco” extrapola suas pretensões ao juntar a bravura de Joe Pistone e a natureza gritantemente quebradiça de Benjamin Ruggiero numa amizade à prova dos tantos abalos nascidos das situações que os uniam. A separação definitiva, insinuada no desfecho, é o massacre que de o público se condói, ainda que Lefty vá, afinal, pagar por suas transgressões e Pistone torne ao mundo dos vivos — ou quase.

As provas coletadas por Donnie Brasco deram ensejo a mais de duzentos processos e um número superior a uma centena de condenações. Desde então, Pistone trocou de identidade e mora com a família em endereço desconhecido. Sua cabeça vale quinhentos mil dólares no câmbio negro da súcia multimilionária que ainda comanda uma vasta rede de negócios em todo o território americano.


Filme: Donnie Brasco
Direção: Mike Newell
Ano: 1997
Gêneros: Crime/Drama
Nota: 9/10